O Estado de São Paulo, 11 de outubro de 2006
Eleição após eleição, a política no Brasil vem perdendo qualidade, ameaçando a virtude da democracia. Parte significativa de seus atores, em déficit na ética e na competência, se vale da vulnerabilidade popular à ilusão para fazer da política instrumento do usufruto do poder e meio de vida, em vez de missão cívica. Os sintomas dessa conjuntura, de cômicos a trágicos, impregnaram a campanha de 2006, marquetizada em baixo nível intelectual e ético, em geral sem compromisso com a realidade, a viabilidade e a verdade e tampouco com os já em si vagos programas partidários, à sombra da apatia do povo descrente de melhora, incapaz de discernir a respeito ou cooptado por promessas de benesses públicas.
À perda de qualidade da política se acrescente o precário quadro social, refletido, por exemplo, no subemprego e na informalidade, na compressão da classe média, nas agressões socioambientais e na favelização aviltante. Nas insuficiências do SUS, do INSS e da educação pública – a fundamental, necessária à produtividade da economia moderna e à inclusão política pautada pela consciência cívica. Na banalização do desrespeito à lei e na tolerância com o delito, do pequeno à corrupção e à criminalidade, com a diminuição da capacidade da autoridade, se não da vontade, debilitada pela perda de qualidade da política, de aplicar a lei. No consumismo de “necessidades desnecessárias”, razão de desvios comportamentais para satisfazê-las, do endividamento descontrolado ao delito.
Finalmente, há que se lhe associar, na economia, o desenvolvimento lento e a modesta participação na economia global, vexatórios no âmbito dos países emergentes, à vista do potencial do Brasil. A influência política negativa é sensível: na postergação das reformas úteis para estimular o investimento privado e restaurar a capacidade do Estado no que lhe é próprio. Na fragilidade da segurança jurídica necessária ao funcionamento da economia. No anacronismo das estroinices ideológicas ou interesseiras do nacional-desenvolvimentismo e seu capitalismo de Estado, que pode recrudescer, embora o modelo esteja exaurido. E na política econômica externa orientada mais pela ideologia do que pela racionalidade do mundo globalizado.
Pairando sobre a interação da perda de qualidade da política com a desordem social e a letargia econômica, e agravando seus males, o peso da cultura estatista, de Estado onipresente intrusivo, dia a dia mais dependente de tributação e/ou endividamento para sustentar nosso frágil equilíbrio fiscal, quase autófago nos gastos públicos e, apesar da carga tributária, incapaz de atender às demandas de sua alçada. Enfim: o peso da cultura de Estado atrasado política e institucionalmente, patrimonialista, clientelista e cartorial, aberto à corrupção e ao fascínio do emprego público, com suas vantagens exclusivas e greves que prejudicam o povo, sem risco para os servidores.
Resultado: o abalo da credibilidade das instituições democráticas, principalmente, embora não apenas, dos partidos e da representação congressual, interveniente nas correções, mas inapetente ou impotente para realizá-las. A evolução desse cenário é incerta e pode até caminhar, pelos meandros ambíguos da lei, para alguma versão de democracia exercida com nuanças nem sempre rigorosamente dentro dos parâmetros clássicos do Estado democrático de Direito. Em vez das reformas necessárias, nas circunstâncias brasileiras atuais há o risco de ocorrer a marcha à ré estatista, matizada por políticas intervencionistas, estatizantes e social-populistas, comumente inibidoras do desenvolvimento sadio.
Tudo legitimado na liturgia democrática pela apatia ou cooptação: da massa pobre, via anestesia assistencialista; do trabalho incluído, pela atenção a interesses corporativos; do peleguismo sindical, pela inserção patrimonialista no usufruto da máquina pública; e dos políticos e clientelas, pela distribuição de cargos, liberações eleitoreiras de recursos públicos e outros meios não virtuosos. E tudo apoiado por artifícios em tese democráticos, mas sujeitos à monitoração viciada, como são os plebiscitos, referendos e decisões participativas (por vezes adequadas em temas simples, para pouca gente), e pelas ações em desafio ao direito, de movimentos sociais, parapolíticos. Por tender a depreciar a mediação político-representativa, um esquema dessa espécie é ameaça à tranqüilidade social e institucional, ainda mais em país grande e heterogêneo como o Brasil, com interesses e visões até divergentes, não conciliados por partidos de visão nacional. O preocupante quadro de secessão político-social e regional, nitidamente evidenciado na eleição presidencial de 2006, prognostica essa possibilidade.
Não se trata de determinismo: a evolução para melhor é obviamente factível, mas à primeira vista o Brasil está mais para preocupação do que para euforia. Na Física, o conceito da entropia é associado ao estado em que se encontra um sistema; quando há degradação do seu potencial de energia, a exemplo da dissipação da energia térmica em temperaturas baixas, diz-se que sua entropia aumenta. Trazendo o conceito para o sistema político-econômico-social do Brasil, podemos dizer que, em razão da política medíocre, influente em tudo, da desordem social e da modorra econômica, a entropia nacional vem aumentando, com desperdício do potencial brasileiro. A continuar aumentando – progresso lento, condução insatisfatória do quadro social, pouca presença na ordem internacional, estatismo ao mesmo tempo exacerbado e falho em seu espaço precípuo -, o Brasil permanecerá emergente sem, de fato, emergir, indefinidamente o “país do futuro”, assim qualificado há 60 anos. Mais dia, menos dia, vai acabar correndo o risco inerente aos dissabores aventados acima.
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