Por Carlos Alberto Di Franco
Corrupção endêmica e percepção social da impunidade compõem o ambiente propício para a instalação de um quadro de desencanto institucional e de depressão cívica. Alguns, equivocadamente, vislumbram uma relação de causa e efeito entre corrupção e democracia. Outros, perigosamente desmemoriados, têm saudade de um passado autoritário de triste memória. Ambos, reféns do desalento, sinalizam um risco que não deve ser subestimado: a utopia autoritária. Quando a efetivação da justiça parece impossível, messianismos carismáticos ganham força e aval social.
O Brasil, ao contrário da Venezuela, tem instituições razoavelmente sólidas, embora parcela significativa da sociedade já comece a questionar a validade de um dos pilares da democracia: o Congresso Nacional. O descrédito generalizado, sobretudo dos parlamentares, captado em inúmeras pesquisas de opinião, é preocupante. Queixa-se a sociedade da impunidade radical. O fato de a Polícia Federal prender e o Judiciário soltar, independentemente de eventuais razões processuais corretas que possam justificar o procedimento, conspira, sem dúvida, contra a credibilidade do Judiciário. Urge dar uma resposta à demanda de ética e decência da sociedade.
Em sugestiva entrevista ao jornal O Globo, o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Rodrigo Collaço, defendeu a idéia de que o Judiciário, como um dos Poderes do Estado, “deve ter política judiciária para fazer frente às demandas da sociedade”. Segundo Collaço, “o momento exige que, além de combater a morosidade processual, o Judiciário dê prioridade de julgamento a processos importantes nas seguintes áreas: combate à corrupção, defesa do patrimônio público e julgamento de autoridades com foro privilegiado. Se o Judiciário estabelecer política de priorizar esses processos, vamos dar uma resposta à sociedade”.
Ademais de defender a priorização do combate à corrupção, o magistrado propõe a bem-sucedida experiência da especialização. Referindo-se a essas experiências positivas, Collaço menciona o exemplo que nos chega do Rio Grande do Sul, “onde há uma câmara especializada do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos e vereadores”. Sublinha o presidente da AMB que “não há Estado no País que tenha mais prefeitos e vereadores punidos que o Rio Grande do Sul, porque lá houve especialização e os desembargadores têm apoio técnico no tribunal para julgar esses casos”. Tratei de confirmar os resultados. E fiquei bem impressionado. Tem prefeito na cadeia. A exemplaridade, que é um dos grandes benefícios da eficácia da lei, tem sido poderosa arma preventiva no combate à corrupção naquele Estado.
Experiências como a do Rio Grande do Sul, comprovadamente eficazes, deveriam servir de emulação. Mas é preciso, além disso, ter a coragem de denunciar as dramáticas conseqüências que podem advir do formalismo técnico que tem dominado amplos setores do Judiciário. Apoiados em princípios jurídicos verdadeiros e nas melhores intenções, alguns magistrados estão perdendo conexão com a vida real. O respeito à Constituição é um pré-requisito da democracia, mas a interpretação da norma constitucional é condição indispensável para a realização da justiça.
Alguns setores do Judiciário evidenciam uma notável dificuldade de captar a gravidade da situação brasileira. O apego à letra da lei está bloqueando o fluxo de oxigênio que pode salvar o paciente. O que se espera do Judiciário não é apenas que seja um zeloso aplicador da letra da lei. Isso é muito, mas é pouco. O que se espera dos nossos magistrados é uma fina capacidade de discernimento, uma delicada sensibilidade para fazer justiça interpretando a lei. Sei que para muitos, consciente ou inconscientemente influenciados pela cultura do positivismo jurídico, pode parecer uma temerária heresia falar em interpretação social da lei. Estou convencido, no entanto, de que a gravíssima epidemia de corrupção está a exigir uma corajosa revisão de rotineiros e cristalizados procedimentos. Ou o Judiciário compreende a gravidade da situação e a força da demanda social ou será atropelado.
A dúvida, estou certo, não é se a reforma modernizadora do Judiciário e das leis será ou deixará de ser feita. Mas se será feita no âmbito do sistema democrático ou sob um regime autoritário. A Venezuela está aí e deveria servir de escarmento. O formalismo jurídico sem vida pode matar a democracia. O que se quer não é a implementação da justiça à margem da lei e do direito de defesa, e, sim, um Judiciário que saiba encontrar, na interpretação das leis, os caminhos corretos para a realização da justiça e o combate à impunidade.
A imprensa, independentemente de alguns excessos, está cumprindo o seu papel. Sucessivas matérias, desnudando autênticas redes de corrupção instaladas no coração dos Poderes da República, têm desencadeado uma irreprimível onda de decência. A Polícia Federal (PF), não obstante os abusos que devem ser coibidos, tem feito um bom trabalho. Um balanço sereno mostra que o saldo das operações da PF tem sido muito mais positivo que negativo para a democracia. O Ministério Público tem contribuído enormemente na luta contra os predadores do interesse público. É claro que devemos combater os riscos do prejulgamento que podem advir de uma declaração precipitada e pública de um promotor estampada em manchete de jornal. Mas isso não pode gerar omissões e covardias funcionais. A corrupção é um câncer que deve ser enfrentado por todos: jornalistas, promotores, policiais, juízes e cidadãos.
Chegou a hora do Judiciário.
Carlos Alberto Di Franco é diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, e diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia
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