Autor Convidado: Mauro Godoy Prudente
Um dos princípios fundamentais da ciência econômica pressupõe que uma parcela significativa dos atos humanos guiados pela razão está ligada à obtenção de bens sociais escassos e, ipso facto, muito disputados. Um agente econômico “racional” é definido como aquele que utiliza os meios adequados para atingir fins estabelecidos previamente, buscando maximizar seus ganhos e minimizar seus custos. Segundo Max Weber, em sua célebre tipologia das ações humanas, os atos com sentido econômico são uma subclasse do que ele chamou de ações racionais com relação a fins. Nestas últimas, dado o fim, o agente busca ou produz os meios racionalmente adequados para atingi-lo. Ora, os bens escassos a que todos aspiram não estão limitados ao mundo da economia. Além da riqueza material, o prestígio social e o poder político também são bens arduamente disputados pelos seres humanos. Nas sociedades que atingiram um nível mais elevado de desenvolvimento sócio-econômico e cultural, cada um desses bens criou um mercado específico, delimitado por meio de um conjunto de regras operacionais reconhecidas e seguidas por aqueles que resolvem disputá-los. É comum, nessas mesmas sociedades, o seguinte fato: aqueles que atingem o sucesso no mercado econômico buscam também prestígio social e, freqüentemente, poder político. Um exemplo conspícuo é a figura de Bill Gates: como empresário, ele foi o paradigma do poder ilimitado do Capitalismo para geral mobilidade econômica. Egresso do mundo da economia, no qual atingiu uma posição ímpar, Gates enveredou pelo mercado do prestígio social, tornando-se um dos maiores filantropos da história do ocidente e, quem sabe, do mundo. O que existe de interessante neste exemplo é o fato de que, nas sociedades desenvolvidas, os mercados dos bens escassos acima referidos – para utilizar uma analogia com a geometria -, organizam-se sob a forma de uma pirâmide, cuja base é o mundo econômico e o ápice é o mundo político. O acesso ao prestígio social e ao poder político nessas sociedades requer, via de regra, o êxito econômico. Examinando esses mercados do ponto de vista quantitativo, pode-se ver que existe um número muito maior de indivíduos engajados em atividades econômicas do que em atividades sociais e políticas, entendidas essas últimas no sentido clássico da expressão: conjunto de indivíduos ligados ao exercício do poder político, seja como representantes eleitos, burocratas partidários, magistrados ou demais funcionários públicos dedicados a essas atividades. Um sociólogo interessado em desenvolvimento comparado poderia criar um índice que retratasse o número de pessoas engajadas em cada um desses mercados nos distintos países. Este seria um interessante critério para medir o desenvolvimento sociopolítico, assim como a renda per capita o é para comparar os níveis de desenvolvimento econômico, e o Prêmio Nobel é também um bom critério para comparar o desenvolvimento científico entre os países. A propósito deste último, Alan Peyrefitte criou um índice Nobel de ciências, dividindo o número de laureados de um país pela população do mesmo (total de agraciados com o Premio Nobel de Ciências/milhão de habitantes) que está publicado em sua obra A Sociedade de Confiança. Somente para darmos alguns exemplos, no período de 1961/1992, o índice da Suíça é 1,11; o dos Estados Unidos é 0,56; e o do Japão é 0,03. Assumindo-se a premissa segundo a qual a economia absorve a maior parte das pessoas ocupadas, segue-se que um dos princípios das sociedades desenvolvidas pode ser resumido num aforismo com o seguinte conteúdo: ganhe sua vida e depois vá cuidar da vida dos outros! Tal como pedagogicamente ilustra o exemplo de Bill Gates, o proselitismo em favor do próximo torna-se bem mais verossímil quando o êxito no mundo econômico já foi alcançado. Se os parágrafos acima contêm uma descrição, embora sumária, de como são hierarquizadas, nas sociedades desenvolvidas, as motivações racionais dos indivíduos, é tentador comparar esse resultado com outros países em estágios distintos de desenvolvimento. Em todos esses últimos, pode-se estabelecer como regra geral que o sistema econômico, por razões que não serão examinadas neste artigo, foi incapaz de integrar produtivamente os indivíduos, criando um grande desemprego estrutural de trabalhadores, os quais, sem recursos para prover a própria vida, tiveram, querendo ou não, a sua subsistência ligada ao mundo da atividade social e política. A solidariedade social autônoma nesses países, por razões históricas, que também não nos cabe considerar neste espaço, sempre foi pouco significativa. Para darmos um contra-exemplo, no século III a.C. os Judeus já haviam desenvolvido formas extremamente avançadas de solidariedade social, que atingiram seu auge com a regulamentação da tsedaka. Tal como observa Jacques Attali em sua obra Os Judeus, o Dinheiro e o Mundo, esse instituto mobilizava 10% dos recursos da comunidade, geridos de modo autônomo (sem a presença governamental), para fins assistenciais e previdenciários: a tsedaka garantia o dote das moças pobres, a renda aos idosos sem família, a acolhida a estrangeiros de passagem, os empréstimos sem juros, o resgate de escravos e até – pasmem! – a escola para as crianças! Em nosso país, sem a tradição do solidarismo autônomo da sociedade civil, cuja honrosa exceção foi a Igreja Católica (embora não possamos esquecer dos íntimos laços que a uniam ao Estado), via de regra é o governo que, por meio de políticas assistenciais, mitiga os padecimentos dos miseráveis. Uma série de instituições públicas e privadas operacionalizam as chamadas “políticas públicas” voltadas para os pobres em geral. Um observador atento, ainda que não muito perspicaz, não leva muito tempo para se dar conta de que o montante elevado de recursos públicos destinados ao assistencialismo é um incentivo para a atuação de indivíduos dinâmicos e empreendedores, que poderíamos denominar, na falta de um termo mais adequado, de “capitalistas sociais”. Prova disso é a proliferação de ONGs dirigidas a “atividades sociais”, que vivem às expensas desses recursos. Qualquer um, por mais despreparado que seja, desde que dotado de um razoável poder de persuasão, pode encampar e/ou produzir um discurso razoável em favor dos “pobres” e, por meio dele, garantir acesso a verbas públicas. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à atividade política. Operando de modo similar à economia, no mercado político os indivíduos disputam o acesso a cargos públicos por meio de eleições. Nesse mercado, o “culto à pobreza” torna-se um excelente handicap na busca dos tão sonhados votos. Em síntese, nas sociedades em que o sistema econômico é pouco desenvolvido ou cresce abaixo da oferta de mão-de-obra, gerando poucos empregos com renda elevada, a atividade política torna-se uma via alternativa para produzir a mobilidade social. Tempos atrás, as profissões de engenheiro, médico e professor, dentre tantas outras, preenchiam o imaginário infantil. Hoje, o sonho é ser vereador, deputado ou, no mínimo, conselheiro tutelar. Com isso, nas sociedades subdesenvolvidas, a máxima: “ganhe sua vida e depois vá cuidar da vida dos outros” é invertida: “ganhe sua vida cuidando da vida dos outros”. É exatamente por essa segunda via que a pobreza se torna um grande negócio. No Brasil, o assistencialismo público movimenta uma parcela significativa do PIB e emprega um número impressionante de pessoas. Não estaria longe da descrição objetiva dos fatos aquele que dissesse que, em países como o nosso, existe uma “indústria da pobreza”, que gera milhares de empregos e movimenta uma parcela não-desprezível da riqueza social. Mas, como é público e notório, o assistencialismo, desvinculado do crescimento econômico e da geração de empregos, não retira ninguém da situação social precária em que se encontra. Até a CNBB deu-se conta dessa verdade insofismável. Embora as políticas assistencialistas sejam um “mal necessário” cabe ao setor público, acima de tudo, estimular os cidadãos a gerirem de modo autônomo as suas vidas. O republicanismo moderno entronizou a crítica ao paternalismo feita pelo maior dos filósofos iluministas: Immanuel Kant. Para Kant, o paternalismo é uma forma despótica de governo, que dentre outros males, tolhe a liberdade dos cidadãos. O assistencialismo reforça o paternalismo e sua imagem especular: o clientelismo. Com isso, ao inverter a relação entre fins e meios – na qual o assistencialismo se torna um fim e não um meio na busca da autonomia individual -, o poder público perde sua legitimidade como ator capaz de produzir uma intervenção racional na realidade que produza uma redução efetiva das desigualdades sociais. Na ótica do paternalismo (ou do neopopulismo), não se trata de erradicar a pobreza, por meio da criação de condições materiais e culturais que viabilizem um processo acelerado de desenvolvimento econômico, produzindo, por sua vez, os empregos necessários para eliminar o desemprego estrutural da mão-de-obra existente; mas de promover a “inclusão social”. Assim, por mais paradoxal que possa parecer, num país composto por uma população jovem e em rápido crescimento (segundo o último censo demográfico, 49,5% da população brasileira tinha até 24 anos), não existe nem uma clara e precisa preocupação governamental nem um amplo consenso social sobre a necessidade imperiosa de elevar as atuais (e medíocres) taxas de crescimento do PIB. Afinal de contas, dizem alguns, o crescimento econômico, acima de certos níveis, degrada o meio-ambiente. Além disso, o que fazer com todas as instituições privadas e públicas voltadas para o atendimento dos pobres, num cenário de erradicação da pobreza?
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