Desde 2002 observo uma constante no noticiário. Não que não existisse antes, mas ficou bem mais presente nos últimos tempos. Trata-se da aplicação da visão alternativa de propriedade privada característica do socialismo tupiniquim, hoje, discretamente feliz ao ser chamado de “bolivariano” (desde que o elogio venha por sussurros, claro). É uma herança histórica, evidentemente, do próprio socialismo. Proudhon ficou famoso por ter dito que “a propriedade privada é um roubo” e, atualmente, os socialistas dizem que “o direito à propriedade privada é a origem do roubo”.
Se o direito à propriedade privada é um “mal”, então é difícil imaginar indivíduos reivindicando direitos sobre, digamos, sua própria força de trabalho. Afinal, a força de trabalho não é uma propriedade que lhe compete, já que, segundo os não-liberais, um roubo seria. Mas quem foi roubado? Normalmente, a “classe trabalhadora”. Afinal, o trabalho tem “função social”, o que significa que trabalhar para Stalin não é escravidão, mas trabalhar para Hitler é uma decisão errônea, fruto de uma ilusão criada pela burguesia.
Dito isto, suponha que um indivíduo que realmente acredita na maldição intrínseca do direito à propriedade privada assuma um cargo público. Em princípio, há uma certa satisfação pessoal: o cargo não é privado, é público. Mas, e na hora da rotina? E quando caírem sobre a mesa os documentos que pedem sua assinatura? Provavelmente ele pensará que isto é “coisa da burocracia”, logo, de weberianos e, portanto, não se trata de socialismo, mas sim da prática herética advinda de uma teoria superficial (ele, orgulhosamente, criaria um jargão para isto: “o fetichismo da sociologia”) que não leva em conta as profundas, complexas e dinâmicas relações de classe.
Se este indivíduo cometer um erro ou, intencionalmente, aceitar um suborno, pela lógica de seu pensamento, não poderá ser responsabilizado, já que não existe qualquer legitimidade em se lhe atribuir a responsabilidade de um ato. Por quê? Porque os direitos de propriedade privada são ilegítimos. Se há uma crise – como nunca se viu antes neste país – no setor de aviação civil, regulamentado pelo setor público, não há como culpar alguém. A culpa não é de ninguém. Para não ficar muito feio, claro, pode-se sempre jogar a culpa em algo genérico, vago e impreciso. Pode ser a “herança maldita”, “a sociedade” ou “a história escravocrata deste país”. E se uma promessa do presidente é descumprida pela equipe ministerial? Não há culpados. Não há como ter culpados porque este o é por conta de algum evento por ele praticado. Como não se pode atribuir responsabilidades privadas a um indivíduo, voltamos ao ponto inicial deste artigo. Ah sim, alguém poderia dizer que foi “possuído pelo tinhoso”, mas isto também tem sabor de argumentos baseados no conceito de… propriedade privada.
Esta visão de mundo, ou pelo menos este modus operandi, se imaginarmos que o discurso possa ser simples hipocrisia, tem estado muito presente no noticiário, quando não corroborado por certos articulistas, cansados (ou favorecidos) com o status quo – no qual não existem, nunca, culpados. Não que sejam ignorantes os que se embriagam com esta prática. Sociedades caracterizadas por um incentivo muito maior à redistribuição de recursos (também conhecida como “socialização de prejuízos”) do que à busca pela eficiência não são povoadas de bestas quadradas. Pelo contrário, costumam apresentar bons níveis educacionais, como recentemente mostraram Carraro e Damé. E não há paradoxo algum nisto: é preciso muita lábia para tirar a culpa dos próprios ombros e jogá-las na “sociedade”.
Maior alfabetização nem sempre gera os efeitos desejados. Veja-se, por exemplo, o caso da profissão de economia no Brasil:
A criação da economia profissional no Brasil, entretanto, não era uma simples questão de implantação de um currículo moderno. Havia problemas culturais e institucionais mais amplos que dificultavam o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. As tradições intelectuais do Brasil e de outros países latino-americanos gravitavam em torno do pensador, um homem que se orgulhava de sua vasta cultura e que rejeitava a especialização. Esse pensador, com freqüência, com a mesma facilidade que escrevia sobre sociologia e política contemporâneas, escrevia também sobre literatura e, seus estudos, muitas vezes, cruzavam fronteiras interdisciplinares. (…) o fato é que os autores que tratavam de questões sociais geralmente escreviam sem qualquer referência a estudos monográficos, os quais, na Romênia, eram citados já antes da Primeira Guerra (…). Os juízos do ensaísta brasileiro tendiam a ser definitivos e eram tratados de forma histórica.
(…)
Esse fato se deve principalmente a que, no Brasil, o número de estudantes universitários era reduzido, em comparação com as oportunidades de emprego na advocacia, no jornalismo e no serviço público.
(…)
Uma razão sociológica para a persistência da tradição do pensador é que raramente as instituições acadêmicas brasileiras voltavam-se para a pesquisa. [Joseph L. Love, “A Construção do Terceiro Mundo”, Paz & Terra, 1998, p.350-1, grifos meus].
Para finalizar, eu diria que pessoas formalmente bem educadas são boas candidatas para a construção de um discurso que negue a responsabilidade individual de seus atos, tanto quanto para a construção do seu oposto, ou seja, o discurso que percebe os direitos de propriedade privada como fundamentais na recompensa e no castigo por nossos atos. Não é porque você errou que a culpa é minha, certo?
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