Nada é mais pungente do que o confronto de um país com seus princípios. Com a moralidade ideológica, cívica ou religiosa que adotou como credo, mas que, num determinado momento, aparece como um adversário, obstáculo ou contradição. Como é possível que a nossa boa e velha ideologia se volte com tanta força contra nós, fazendo com que um lado capital de nossas vidas se torne, como as dores de dente, nossa inimiga?
Essa é uma questão que o neoliberalismo (com sua demanda de igualdade, transparência, bom senso, ética, competição honesta, eficiência administrativa) apresenta ao Brasil e a cada um de nós no presente momento. Trata-se do conflito implicado naquele ‘bater de frente’ que machuca, decepciona, faz chorar e, às vezes, derruba. A necessária e desejada ‘dar a volta por cima’, imortalizada na música de Paulo Vanzolini, é um exemplo lamentavelmente raro de como se deve lidar com esses profundos baques existenciais.
Claro que não estou falando do confronto rotineiro entre um indivíduo ou um grupo com coisas como os Dez Mandamentos, o Código de Hamurabi, a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou a Constituição. Também não estou me referindo apenas a congressistas, ministros, juízes, presidentes e homens de governo com suas promessas e seus juramentos raramente cumpridos. É fácil e, em geral, tranqüilo, culpar qualquer pessoa por alguma falta, quando (de fora) confrontamos seus atos concretos com uma lista fixa e, por definição, imutável de preceitos morais, legais ou religiosos. Há sempre um fosso incomensurável, como nos romances de Graham Green, entre ideais abstratos e a sua experiência concreta dentro da dinâmica social. Daí, de um lado, o sentimento de erro, de frustração e de culpa; e, do outro, a mendacidade patológica que aflige os sem nenhuma consciência moral. No caso do Brasil, a doença atinge com mais força porque é justamente na área incumbida da resolução dos paradoxos – no chamado ‘governo’ – onde se concentra esse vazio que sequer aparece como culpa ou crime.
Os dilemas existenciais intrigam. O operário eleito para melhorar o País que, no poder, se torna refém de táticas políticas abertamente insinceras e desonestas; a moça branca, filha de esquerdistas politicamente supercorretos que se apaixona perdidamente pelo belo, inteligente e culto favelado negro; o padre que, tendo substituído a religião pela política, não acredita em coisa nenhuma, mas ainda se agarra ao seu poder de perdoar e promover o milagre da transformação do pão e do vinho em carne e sangue de Cristo; o professor de filosofia que prega e pratica a liberdade sexual, mas dela exclui suas filhas; o partido político de credo pequeno-burguês, acusatório e moralista, que faz da hipocrisia o centro de sua atuação; o policial ladrão que rouba conscientemente para passar o fim de semana em Búzios, com seus amigos aristocratas; o esquerdista rico que, culpado do que recebeu sem merecer, ama ideológica e perdidamente os pobres; o católico que acredita no Espiritismo e recebe mensagens confortadoras dos espíritos dos seus entes queridos; o velho que, pintando o cabelo, encontra uma nova vida; o antropólogo otimista que tudo sabia sobre a morte em todas as culturas que se vê obrigado a enfrentá-la dentro de sua própria casa; a autoridade que diante da onda de crime e terror se esconde, dando desculpas ou aceita covardemente a realidade, em vez de tomar providências…
E, para terminar esta certamente infindável lista (faça a sua, leitor) com as palavras do grande poeta inglês, Robert Browning: ‘O ladrão honesto, o homicida compassivo, o ateu supersticioso, a mulher de reputação duvidosa… Nós ficamos observando enquanto eles se mantêm em equilíbrio; seguindo a vertiginosa linha intermediária.’
Só essa margem perigosa das coisas interessa, como sabem os santos e os poetas. Nela, ocorrem os paradoxos que nos viram pelo avesso, às vezes promovendo a suspensão da primeira pedra. Ou, ao contrário, que instituem a rotina da inoperância covarde, da demagogia ritualizada e do salve-se quem puder, cretino e canalha.
Como povo, estamos hoje, aqui e agora, batendo de frente com essa questão. Como passar pelo desafio de ser sincero quando somos a todo instante confrontados com a nossa própria insinceridade? Como começar de novo, se nada foi refeito, reparado ou regenerado por novas convocações, palavras de ordem ou esforço para tomar pé e olhar o horizonte?
Quem jamais teve um confronto mortal com seus valores que atire a primeira palavra ou artigo. Mas que o faça antes que a rotina das contradições – crimes perdoados, inoperância de todos os poderes, autocondescendência pessoal e partidária; enfim, antes que a mendacidade como programa e ética – nos engula.
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