“Inflação aleija, câmbio mata!” Mário Henrique Simonsen, economista, ex-ministro da Fazenda
Os leitores já pararam para pensar que numa economia capitalista, com preços livres, nenhum consumidor precisa pedir autorização para ir ao mercado e comprar quantas canetas, sapatos, quilos de arroz e feijão, latas de cerveja, sacos de cimento e qualquer outro produto que desejar? E que, mesmo assim, normalmente não faltam produtos, não se formam filas quilométricas e as forças armadas não precisam ser convocadas para “conter a especulação” ou “garantir o acesso da população aos bens de primeira necessidade”? Que não há crise de abastecimento no capitalismo – e tampouco crise de fome? Por que será, então, que no último domingo o Coronel Hugo Chávez precisou ameaçar empresários venezuelanos com a convocação das Forças Armadas para garantir aquelas mesmas coisas?
A resposta é simples: a economia da Venezuela distanciou-se muito do que se pode chamar de capitalismo. Lá o governo cansou de ameaçar os empresários de que iria “estatizar” empresas e bancos; intrometeu-se nos contratos; cerceou o direito dos trabalhadores se organizarem em sindicatos livres; seguiu uma política econômica totalmente irresponsável, exagerando gastos públicos e reduzindo impostos para obter o apoio eleitoral dos mais pobres e encher o cofre dos amigos; fixou preços; fixou o câmbio; ofereceu ajuda externa acima das capacidades do país; comprou títulos da dívida externa argentina; afrouxou no combate à criminalidade e na melhoria da infra-estrutura; politizou e ideologizou o conteúdo da cartilha escolar; perseguiu adversários políticos, fechou canais de televisão e rádio. Alguém se veria tentado a investir num país assim?
Caindo o investimento e a produtividade (eficiência) os preços sobem e as exportações caem. Não há prosperidade no final desse túnel. Inflação e câmbio são duas faces de uma mesma questão: ambos tratam da variação (ou, se preferirmos, da estabilidade) do valor real da moeda nacional. Inflação é uma medida da corrosão desse valor pela elevação dos preços domésticos. Produtos e serviços mais caros significam maior custo de vida e maiores custos de produção para as empresas e queda nas exportações. Diante de preços mais altos, uma unidade da moeda local vale menos no presente do que valia no passado recente. E é apenas natural que a perda de valor da moeda nacional em relação aos preços de produtos e serviços locais seja acompanhada pela correspondente queda de seu poder de compra no exterior – em relação a produtos e serviços, mas também às próprias moedas estrangeiras. Em outras palavras, inflação deprecia o câmbio real (produto-a-produto). Assim, quanto maior a inflação de um país qualquer, X, em relação à de outro, Y, menor será, ao longo do tempo, o poder de compra da moeda de X em relação à moeda de Y. O governo de X, ancorado em reservas construídas no passado, pode até conseguir atrasar o ajuste do câmbio nominal (que é a taxa que é publicada nos jornais, diariamente, e que vale para a troca de papelmoeda). Mas jamais poderá afetar o diferencial entre os preços de um mesmo produto ou serviço produzido localmente e no exterior (o câmbio real). Por meio de contas muito simples, consumidores, lojistas, industriais e agricultores sabem, ao câmbio nominal do dia, se faz mais sentido comprar um produto local ou o similar estrangeiro; e, com base nessas contas, decidem
onde adquir esse bem ou, alternativamente, a quem vendê-lo (nacionais ou estrangeiros), a que preço e se devem continuar a produzi-lo (sob o risco de não ter a quem vender).
O decreto de Hugo Chávez – que desvaloriza o câmbio nominal em mais de 100% e cria taxas diferentes para produtos considerados “de importação prioritária” ou “supérfluos” – tenta reverter a lógica cristalina que instrui e motiva as ações dos agentes econômicos numa economia capitalista: ganhar dinheiro por meio de trocas voluntárias e com preços livremente negociados.
Como ainda não está prendendo e nem matando quem desobedecer as decisões do governo que violam este preceito óbvio da vida econômica numa sociedade complexa, mais inflação, mercado paralelo, contrabando, sonegação fiscal e emigração vão ocorrer em maior escala nas próximas semanas e meses. Junto com essa crescente desorganização da economia, é possível esperar mais descontentamento social e intensificação de manifestações políticas contra o governo e contra o regime político instaurado por Chávez. A tal ponto que ele efetivamente terá que convocar as forças armadas para adiar o dia de seu trágico fim (que já não está tão distante). Se estas aceitarão tal convocação é algo que teremos que esperar para ver…
Mas há alguma chance do decreto dar certo, ou seja, de que ele possibilite uma restauração das bases de funcionamento de uma economia sólida e próspera? Simples: não! Nenhum governo é capaz de substituir o mercado – esta rede de informações e contratos sob regras estáveis que viabilizam trocas livres entre produtores, fornecedores, distribuidores e consumidores. Nenhum governo é capaz de estabelecer preços relativos para um conjunto de produtos e serviços sem fortes riscos à continuidade dessa densa rede. Foi a lição mais simples que se tirou do experimento socialista iniciado na União Soviética, em 1917.
Não sejamos ingênuos: governo algum é capaz de fixar corretamente a taxa de câmbio nominal, a começar porque não existe consenso sobre como realizar esse cálculo. Para cada produto e serviço existe uma taxa de câmbio real (preço do bem na moeda local dividido por seu preço na moeda estrangeira), logo o problema básico e inescapável é saber como montar uma cesta de produtos que represente toda a economia, por meio da qual se possa avaliar as mudanças de preços domésticos e externos ao longo do tempo e, em seguida, ajustar o câmbio. Sem contar que as demandas dos consumidores (famílias e empresas) mudam ao sabor de novas tecnologia, fornecedores, informações, etc. Governo algum é suficientemente ágil para ajustar aquela cesta diante de mudanças na estrutura da economia. Além disso, os governos não têm instrumentos efetivos de política econômica para sustentar a taxa nominal que julgarem correta. Dispõem apenas de meios para incentivar o comportamento de produtores, distribuidores e consumidores, mas não para forçá-los a se adequarem às metas dos burocratas. No limite eles podem cruzar os braços, emigrar, levar o capital para o exterior ou operar na marginalidade – frustrando as metas. Por fim, um governo que se arvora a estabelecer preços (e câmbio) administrativamente coloca a mão no vespeiro porque quem produz, vende e compra quer que o preço congelado lhe beneficie; assim, procura influenciar a decisão do regulador. O resultado é simples: inconsistência na cadeia produtiva entre preços de insumos e preços de bens finais seguida de gargalos e desabastecimento.
Diante dos problemas existentes há vários anos e que têm crescido em sintonia com as ameaças do coronel imbuído de implementar o seu “socialismo do século 21” a saída correta seria aumentar as liberdades de todos os cidadãos venezuelanos: preços livres, câmbio livre, abertura comercial, garantias à propriedade privada, desregulação econômica e garantias à vida e à liberdade de ação política de todos, entre outras. Só assim todos e cada um receberiam bons incentivos para produzir mais daquilo que cada um quer comprar, beneficiando a eficiência e fortalecendo a competitividade externa da economia.
(“Jornal do Commercio” – 13/01/2010)
No Comment! Be the first one.