TRANSCRIÇÃO DO COLÓQUIO
– 2a. Parte (Politica) –
TEMA: EFEITOS DO NOVO PANORAMA MUNDIAL SOBRE OS VALORES DA DEMOCRACIA, DA ECONOMIA DE MERCADO E DA LIBERDADE
DEBATEDORES: Alberto Carlos Almeida
Amaury de Souza
Demétrio Magnoli
Eduardo Viola
DATA: 16 de dezembro de 2008
HORÁRIO: 14h30min até às 19hs
LOCAL: Hotel Marina, Rio de Janeiro, RJ
CONTEÚDO
Patrícia Carlos de Andrade: A primeira pergunta é comum ao painel anterior: “Quão profunda é a crise do modelo civilizacional ocidental?” Quer dizer, é uma crise do modelo, e quão profunda ela é?
Amaury de Souza: Eu começaria com um provérbio chinês. Não aquele que diz que “a crise é risco e oportunidade”. Isso já virou um clichê. Mas aquele que diz que é muito difícil prever. Principalmente o futuro. Acho que a característica dessa crise é que ela abre um espectro de possibilidades enorme. Para melhor e para pior. Portanto, pensar essa crise com a ajuda do passado me parece pouco. Estaremos lutando, como disse o Giannetti, a última guerra. Como fazem os militares e, segundo ele, o mercado financeiro. Então em vez de usar a última guerra vamos olhar um pouco para a frente, para as possibilidades que se abrem. Largar um pouco as disposições estocásticas e olhar mais um pouco para o cisne negro. O que pode pintar naquilo que os estatísticos chamam “a cauda cheia da distribuição”, onde um evento tem uma pequena probabilidade de ocorrer — mas, se ocorre, o impacto é máximo. Eu começaria rapidamente nas questões de civilização que não acredito que esteja em causa o modelo civilizatório ou civilizacional ocidental. Ao contrário. Ele se expandiu enormemente, graças inclusive a tudo aquilo que levou a essa crise financeira. Houve um aumento enorme da diversificação ao redor do mundo, a globalização avançou, China e Índia uniram-se — a despeito de suas culturas ditas hostis ou adversárias a esse modelo ocidental… Houve uma enorme adesão no mundo inteiro, por isso não acredito que esse modelo esteja em crise. Mas alguns aspectos daquilo que poderíamos chamar de modelo ocidental podem estar. Eu levantaria três questões para a discussão. Primeiro, a democracia. Existe um risco de revertermos a regimes autoritários ou totalitários? Já temos vários exemplos de democracias autocráticas ao redor do mundo. A começar pela Rússia, passando pelos nossos vizinhos bolivarianos, o próprio modelo chinês… Mas novamente é preciso lembrar que há, por outro lado, uma mudança em curso essencial no meio da cidadania no mundo inteiro, que é uma revolução digital, que hoje tornou o acesso à informação política, e à mobilização política recursos ao alcance de qualquer um. E obviamente essa democratização de meios de participação tem um impacto, e esse impacto se viabiliza fundamentalmente através do processo democrático — falaremos disso mais à frente. Segundo: talvez, a exemplo do que ocorreu em 1929, a preocupação mais imediata seja a questão do protecionismo comercial. Acho que existe, já vemos vários sinais de todos os cantos de que isso possa acontecer, mas é preciso lembrar que na reação ao crash de 1929 o protecionismo conseguiu articular um modelo alternativo, que foi a substituição de importações, que me parece hoje em dia um modelo irrealizável. Não que ele fosse particularmente fecundo. Mas nos dias de hoje, com o avanço da globalização, e sobretudo os avanços tecnológicos de comunicação, me parece muito difícil, mas deixo à discussão a viabilidade disso. Finalmente, uma reflexão a respeito da questão de coordenação. Falamos muito na necessidade de coordenação, sobretudo na impossibilidade de coordenação para enfrentar a crise financeira ou suas sequelas. É curioso, mas como o Giannetti mencionou o primeiro grande modelo utilizados para pensar o problema da coordenação, eu gostaria de lembrar o segundo. O primeiro grande modelo que o Giannetti citou foi o dilema do prisioneiro. O dilema do prisioneiro, que todos nós conhecemos, é aquele em que, se houver colaboração, todos ganham. Mas o segundo grande modelo, para pensar a questão da coordenação, é o paradoxo da ação coletiva. Isto é, se o resultado da coordenação for um bem público, algo que vai beneficiar a todos, ninguém terá incentivo suficiente para produzi-lo. Portanto de um lado temos um modelo, o dilema do prisioneiro, em que todos ganham; por outro lado, é sempre bom lembrar, temos o paradoxo da ação coletiva, em que, se não houver colaboração, todos perdem. São modelos que parecem simétricos, mas que têm conseqüências diferentes se aplicados à crise financeira e às suas seqüelas.
Demétrio Magnoli: O modelo civilizacional ocidental deve ser provavelmente duas coisas: economia de mercado e democracia política. Acho que as duas coisas são contestadas hoje e essa crise pode ter resultados interessantes nessa contestação. A contestação da economia de mercado é o capitalismo de Estado. A esquerda no mundo, e em particular na América Latina, já escreveu que o socialismo não está no horizonte, mas que há uma nova fase preparatória rumo ao socialismo que é o capitalismo de Estado. Isso não é uma interpretação. É um programa; o chavismo se baseia nesse programa. E é com base nesse programa que a esquerda latino-americana fala elogiosamente do que acontece na Rússia hoje. Então existe uma contestação à economia de mercado, que é o capitalismo de Estado, e existe uma contestação à democracia que é o autoritarismo político, que normalmente acompanha o capitalismo de Estado. Existe portanto alguma coisa que está em questão. É interessante que o momento de auge do modelo de civilização ocidental foi a Guerra Fria. Esse foi o auge, o momento em que as grandes potências do ocidente acharam que existia um desafio suficientemente grande, posto pela URSS e pelo bloco soviético, para valorizar e promover um certo modelo de economia de mercado e democracia política, que foi vitorioso com a queda do Muro de Berlim. Depois disso, há um cuidado muito menor no Ocidente com esse modelo. Certamente há um cuidado grande com os negócios. Mas há um cuidado muito menor com o modelo que associa a economia de mercado à democracia política. Por exemplo, é interessante observar como não se considera um problema o fato de a China, que é um grande sucesso da globalização, é o sucesso da globalização: 200 milhões de pessoas saíram da miséria em duas décadas. Isso é a prova de que o mercado funciona muito melhor do que o planejamento estatal — mesmo o mercado pela metade, os camponeses que são a maioria da população chinesa não têm direito à propriedade da terra, e não haverá mercado realmente na China sem o direito à propriedade da terra. Quer dizer, ainda existe uma grande reforma a fazer. Mas pouco se fala disso no Ocidente, porque a China estava oferecendo negócios da China. Parece-me que existe uma grande encruzilhada aqui nessa crise econômica, na qual deveríamos ficar de olho, que é uma encruzilhada do que vai acontecer com a China. A China não pode mais parar de crescer aceleradamente. Ela podia fazer isso no tempo do Mao Tsé-Tung, mas não pode mais, porque começou e não pode parar. É uma explosão social incalculável falar para dezenas de milhões de pessoas que elas vão passar fome de novo. Isso é inaceitável. Qual a solução para isso? Alguém falou aqui na mesa anterior: um Bolsa-Família. Mas não foi por causa do Bolsa-Família que os pobres brasileiros passaram melhor os últimos anos, mas por causa do crescimento da economia e do aumento do salário mínimo. O Bolsa-Família tem outros resultados, eleitorais também. Então me parece que finalmente a China está na encruzilhada em que não estava na época da Praça da Paz Celestial. Finalmente, com a recessão, ela vai precisar criar consumo interno, e para isso é preciso criar direitos. Não há outra forma de criar consumo interno a não ser criando direitos. Então assim como a recessão traz um problema para a economia de mercado e para a democracia política, talvez traga um problema maior para a idéia do autoritarismo político e do capitalismo de Estado. Isso para não falar da Venezuela, que está numa encruzilhada sem saída. Hugo Chávez precisa de petróleo acima de 100 dólares. Se o barril não vale 100 dólares, o modelo dele não existe. Aliás, ele estava começando a sofrer uma crise política séria com o petróleo acima de 100 dólares. Então acho que a crise deveria ser vista como uma oportunidade, mas para isso é preciso cuidar dos valores do modelo ocidental e não cuidar só dos negócios.
Eduardo Viola: Acho que há sim uma crise do modelo ocidental. Não é total. Não porque haja alternativas, como nos períodos anteriores, em que o modelo era contestado, como na Guerra Fria, ou durante o período entre guerras por dois totalitarismos, mas porque há determinadas características do modelo ocidental que dizem respeito à relação entre o curto prazo e o longo prazo e a relação entre a finitude dos recursos — e aqui quero entrar não numa finitude decisiva, mas não questão do clima; a crise climática é uma questão muito profunda. A civilização ocidental se desenvolveu com alta intensidade de carbono, nós afetamos o ciclo que estabiliza toda a natureza. E aqui não falo do ambiente em geral, estou falando de clima especificamente, que é muito mais profundo que ambiente, num sentido. E hoje todos os líderes mundiais e todos os principais cientistas reconhecem que essa é uma questão decisiva da humanidade e isso requer uma cooperação muito mais complexa e difícil do que a criação de governança financeira ou econômica global. Então há uma crise endógena. O modelo ocidental não está ameaçado de fora. A vitória na Guerra Fria perdura e a capacidade de respostas mais estatistas, no sentido de totalitárias, ou autoritárias me parece baixa. A convergência da China com as democracias de mercado do Ocidente se desenvolveu nos últimos 30 anos mais no aspecto econômico que no aspecto político, mas não há nenhum indicador de que isso vá retroceder no futuro próximo. Então eu vejo essa questão: algo novo, impossível de imaginar 20 anos atrás, que é o quanto o sistema em que vivemos é aberto. O bom é que reconhecemos essa crise. O Ocidente hoje reconhece unanimemente a existência dessa crise. Mas a velocidade dessa crise é hoje muito maior do que se pensava alguns anos atrás. Em relação a isso, a crise financeira atual converge com a outra crise e abre uma incerteza gigantesca, tanto de coisas positivas, como falava Amaury, de possibilidades de cooperação novas, quanto de negativas, de retrações nacionalistas, de grande aumento dos fenômenos climáticos extremos.
Alberto Carlos Almeida: Bom, eu vou discordar. Todo mundo falou de crise e eu tenho um lado muito otimista. Acho que não há essa crise. Existem coisas que são passageiras, quer dizer, uma crise econômica é grave, mas o mundo já passou por várias. Você se recupera mais ou menos lentamente, depende da crise. Depois vamos contar a história dessa crise. Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer. Nesses ciclos você vem subindo e de repente há uma queda, mas a tendência é sempre de subida. Então acho que a tendência é de os valores ocidentais se ampliarem no mundo sempre. Provavelmente pode haver um ou outro retrocesso passageiro. Se a gente pegar toda a literatura que trata disso, clássicos da política e da sociologia política — o surgimento dos direitos: primeiro foram os direitos civis, a pessoa quer ter o direito a se manifestar etc; depois os direitos políticos, a pessoa quer votar, ser eleito; depois vêm os sociais, depois a cidadania fiscal… E você começa a ver que isso começa a acontecer em vários países. Isso tem a ver por exemplo com renda per capita. Na medida em que vai aumentando a renda per capita dos países, essas “cidadanias” vão aumentando. Isso tem a ver com o impacto da escolarização, não há a menor dúvida. Falamos muito de China; acho que a China é um problema, mas que o mundo islâmico é um problema maior. Ele está mais quietinho agora, porque só aparece em momentos de atentado. Mas a semelhança entre o que aparece para nós do mundo islâmico e o traficante do morro é muito grande. Quer dizer, são pessoas que não têm nada a perder. Por isso que elas fazem atentados suicidas. São pessoas muito jovens, de baixíssima escolarização, sem nenhuma perspectiva de vida. Quem não tem nada a perder faz o que eles fazem. É a mesma coisa de um traficante em qualquer morro. Todos estão se suicidando. Um sabe que não vai chegar aos 30 anos, aos 40 é impossível, e outro num atentado terrorista, Torres Gêmeas etc. Então, o que acontece? Até quando o mundo islâmico vai segurar isso? Um processo de secularização que passa, é óbvio, por expansão do ensino. Porque a escolaridade desses países é baixíssima. É muito interessante ver o conflito Israel-Palestina. São duas regiões que estão nos dois extremos. Os três países com escolaridade mais alta são EUA, Israel e Coréia do Sul, e as escolaridades mais baixas estão nos países islâmicos. O conflito tem a ver com isso também. Como o Ocidente venceu e vencerá no longo prazo por esse meio… Nos EUA hoje 2/3 da população adulta americana fez college ou equivalente. Isso é muito, 2 em cada 3 americanos adultos. Daqui a pouco vai ser 100%. Uma das coisas que o Viola mencionou que eu acho importantes é a finitude de recursos. Tem um lado otimista disso? Tem. As populações se estabilizaram, e aí outros problemas é que vão surgir. As populações estão decrescentes, os costumes andaram mudando no Ocidente. Antes as pessoas tinham muitos filhos, hoje você tem famílias com nenhum filho, famílias com um filho. Você tem casais de homossexuais que não vão ter filhos, e isso vai se disseminar cada vez mais. É ruim não ter a pressão de crescimento populacional, os problemas são outros, mas ela vai deixar de existir em algum momento no Ocidente. A população da Nigéria está explodindo. As projeções do IBGE americano são de que em 2050 ela seja o segundo ou terceiro país mais populoso do mundo. Índia, Paquistão e Bangladesh até hoje não seguraram a explosão populacional. Então os problemas virão daí. A finitude de recursos, a pressão por isso, provavelmente não vai vir do Ocidente, vai vir de onde o Ocidente não entrou. Sempre penso o seguinte: crise da democracia é crise da participação. As pessoas passam a participar menos, e isso também é controverso, há quem não veja problema nisso. Agora vem o Obama e a participação nos EUA, que era decrescente, pulou lá para cima. Então não há essa crise. Crise do mercado é o quê? Competição? Investimentos? Os economistas falaram antes… Se for competição, os níveis de competitividade vêm aumentando ou não. Se for investimento, poupança, aí é outro problema. Alguém mencionou a ética dos fundadores dos EUA, quer dizer, a ética da poupança, do investimento ter-se modificado e agora eles são consumistas como um país católico. Quer dizer, isso daí pode ser que seja um problema. Talvez a gente esteja olhando para algumas coisas que não sejam o problema do Ocidente. Não sei. Estou levantando outras bolas aqui. Tenho essa discordância. Pode haver retrocessos. Não tenho a menor dúvida. A gente fala da crise de 1929, mas a crise de 1929 aconteceu quando? Entre duas guerras que foram percebidas como guerras mundiais. Quando você sai da Segunda Guerra, aquele pacote todo é que foi mal visto. “Olha o laisser-faire no que deu: duas guerras, uma crise, recessão… Peraí, vamos regular tudo!” Mas, depois, começou-se a desregular. Na década de 1950, 1960, houve uma explosão da oferta de ensino superior na Europa. E você começa a desregular nos anos 1970. Leva tempo, mas o impacto é… Você tem movimentos que não são visíveis a olho nu, mas que estão lá. Estão acontecendo e que permitem que o Ocidente seja — no meu entender de otimista — nesse aspecto, mercado e democracia, ao Oriente, ou ao mundo islâmico, China, Índia, Rússia — a Rússia na verdade pertence ao Oriente, quer dizer, vai passar em algum momento para o Ocidente. Mas eu vejo um pouco dessa maneira no longo prazo, em que as coisas são favoráveis aos valores ocidentais. O primeiro impacto do 11 de setembro na vida norte-americana foi regular muito mais a vida. Ali foi uma derrota do Ocidente. Os caminhões, o transporte, o frete, a passagem para o Canadá, que antes não tinha praticamente nenhum tipo de fiscalização, raio-x etc, passou a ter todos eles, as filas eram intermináveis. Isso é ruim para o capitalismo. O problema veio de onde? Do mundo islâmico, com uma coisa pontual. Provavalmente aquilo já diminuiu; não acompanhei na época, mas foi muito noticiado.
Patrícia Carlos de Andrade: Vamos, então, à segunda pergunta que é “Como muda a relação entre Estado e mercado, entre indivíduo e coletivo?” Alguém quer começar?
Demétrio Magnoli: Começar pelo óbvio: não existe mercado sem Estado. O Estado e o mercado evoluíram juntos, não em oposição um ao outro ao longo de toda a história moderna e contemporânea. Acho que a discussão normalmente é posta em torno de uma questão errada, “mais Estado ou mais mercado”, quando não existe essa opção. Na verdade, a leitura que hoje está sendo proposta por um setor a respeito dessa crise é que tem mercado de mais e Estado de menos, que é a leitura baseada no conceito de “neoliberalismo”, na idéia de que existe alguma coisa chamada “neoliberalismo”. Eu costumo dizer que só há um país “neoliberal” no mundo, que é a China. É o único país “neoliberal” do mundo, porque o liberalismo correspondeu a um tempo em que os direitos políticos estavam restritos a uma elite. Quando os direitos políticos se ampliaram, o direito de voto se ampliou para todo mundo, todo mundo passou a ser eleitor, o liberalismo deixou de existir. O liberalismo foi superado. Hoje existem democracias de massas. Os estados atuais não são estados liberais, são estados democráticos de massas, o que coloca problemas muito sérios, porque certos valores liberais têm de ser defendidos num ambiente que não é exatamente um ambiente liberal. A idéia do conceito de neoliberalismo é que se deveria voltar a um período anterior à crise de 1929, quando existia um Estado liberal. Essa volta é impossível. Os que falam em “neoliberalismo” dizem que os EUA de Ronald Reagan, a Inglaterra de Margaret Thatcher teriam feito alguma volta. É para quem não olha para os gastos públicos. Se você olhar para o gráfico dos gastos públicos nos EUA, na Grã-Bretanha ou onde quer que seja, eles revelam que não houve volta nenhuma. Que não existe “neoliberalismo” nenhum. Que o que existe são Estados democráticos de massas em que o Estado tem uma grande participação, não só no investimento direto como na regulação geral da economia, e os direitos das pessoas geram uma grande parte do consumo. E o país que não é assim — tem alguns outros, pouco importantes, que não são assim — é a China. E cada vez menos dá para ela continuar a ser neoliberal, ou seja, dá para ela continuar a explorar uma mão de obra que praticamente não tem direitos, não pode se organizar, não pode se expressar e que não pode reivindicar. Acho que o verdadeiro problema, quando se fala da relação entre Estado e mercado, entre individual e coletivo, é outro, e a pergunta que eu colocaria é outra: “Como defender importantes valores do liberalismo, as liberdades individuais, o individualismo como valor, numa sociedade que não é mais liberal, em que 10% da população vota, mas uma sociedade que é uma sociedade democrática de massas. Acho que a verdadeira pergunta não é mais Estado ou mais mercado. É como defender valores importantes, o núcleo de valores do liberalismo — não o liberalismo enquanto modelo; esse modelo não volta mais — em sociedades democráticas de massa, em que há uma série de incentivos para se atacar esses valores? Em que o Estado tem incentivos para atacar esses valores, e em que esses valores são erodidos o tempo todo? Só para dar um exemplo, para provocar, a idéia de racialização da sociedade brasileira, que não há só no Brasil, a divisão da sociedade em etnias — isso acontece em diversos países; na Índia, são as castas; na Nigéria, as etnias de cada estado — é antiliberal ao extremo, mas é uma idéia muito propícia para quem controla um Estado numa democracia de massas, porque gera clientelas eleitorais, bases políticas, por aí afora. Mas gera também… genocídio. Gera guerra civil. Então acho que o verdadeiro problema é esse. Como, nesse tipo de sociedade, em que todo mundo vota, e os direitos políticos se universalizaram, certos valores podem se manter? Como defender esses valores?
Eduardo Viola: Ficando na questão de Estado e mercado, acho que o novo agora é que pensado em uma díada tem de ser um tripé: Estado, mercado e instituições globais. A questão do aumento da importância do Estado — que está havendo já, entre outras coisas porque houve uma estatização gigantesca dos bancos, um aumento gigantesco da dívida pública em quase todo o mundo, então já há uma mudança da relação entre Estado e mercado, além das expectativas, das percepções, problemas de legitimidade. Mas nesse momento o que nós temos, já com uma força muito profunda, é a questão da institucionalidade global. Temos uma globalização de alta intensidade já, e a compactação do mundo, gigantesca em todas as dimensões. Então a questão é que a equação Estados nacionais x mercado é pobre para enfrentar a situação que nós vivemos do ponto de vista da realidade da economia e da realidade de outras coisas como por exemplo o clima. Se se coloca a questão nos termos Estado x mercado, e pode ser que isso domine, esse é um caminho de muito retrocesso para a humanidade, ou seja, a tendência vai ser aumentar a importância dos estados, constranger os mercados, pode haver um novo ciclo estatizante, digamos muito dirigista — não muito, porque acho que não existe mais o comunismo no sentido em que existia no período anterior, mas se se coloca nesses termos esse aumento do Estado, será muito difícil para gerar prosperidade e qualidade de vida — não em toda a humanidade, mas como foi a fase anterior. O que se coloca não é se o que se desenvolve é Estado x mercado, mas instituições globais. E isso é algo que se coloca numa escala diferente do que se colocou até hoje. Voltando então ao Giannetti, acho que a questão da cooperação é difícil nesse momento, a questão da criação dessa institucionalidade global. Mas ao mesmo tempo ela está colocada com tal profundidade que dá para ser razoavelmente otimista quanto às possibilidades de aumento da cooperação no sistema internacional. O sistema é muito incerto, e o desafio é de tal magnitude, que aí lembro sempre da história da Guerra Fria. A Guerra Fria não terminou numa guerra nuclear. A humanidade foi capaz de controlar o que era a lógica da guerra nuclear através de todo um sistema, que vai desde o controle da própria guerra nuclear, controle dos arsenais nucleares das superpotências, tratados de não-proliferação nuclear. Tudo isso já está na história da humanidade: a capacidade de lidar com crises extremas cooperando. Nesse sentido, minha resposta é menos pessimista que a de Giannetti.
Alberto Carlos Almeida: Quando você fala de individualismo, a primeira coisa em que eu penso é nos EUA, que é o principal exemplo… Sou também um admirador da sociedade americana, mas acho que ali é interessante, no agregado é interessante, mas no individual, acho que muito dificilmente alguém com a nossa formação seria capaz de ter um amigo americano. É mais fácil ter um amigo europeu. Acho que a noção de amizade deles é diferente da nossa, em função da sua socialização. A noção de laço deles — quando se fala do laço entre um indivíduo e outro, são relações de mercado, de interesse, você não imagina que os americanos têm entre eles um laço como a gente tem com os nossos amigos. Um dos institutos mais interessantes dos EUA é o direito de herança. O homem mais rico dos EUA não vai passar a herança para os filhos. Não por acaso ele se torna um filantropo. No Brasil, as pessoas mais ricas vão passar tudo, senão quase tudo, para os filhos. Você tem esse direito. Lá não existe isso, o Bush tentou mudar. Quem foi contra? Os milionários americanos, incluindo Bill Gates, que impediram a mudança. Porque o filho é o filho e o pai é o pai. O dinheiro que o pai fez não passa para o filho, o filho que se vire. Isso é o individualismo extremado. E aí ele pega a fortuna pessoal dele e começa a gastar fazendo benfeitorias, sei lá. No fundo, acho que isso é uma coisa cultural. Você não repete. Você de repente usa isso como régua, você sabe que está lá, é uma outra formação. Mas na Europa ninguém repete isso, na América Latina ninguém repete isso, no Ocidente ninguém repete isso. É o excepcionalismo americano, ou parte dele. Então isso é uma parte do individualismo. Outra parte é que hoje você tem uma sociedade muito mais plural. Tem nicho de tudo. Clube do charuto, do uísque, do golf, tatuagem… Cada um tem sua turma. E cada um pode cada vez mais fazer o que quiser dentro dos limites da lei. É uma tendência no mundo em que a gente vive. Isso significa o seguinte: o Estado se retraiu de uma maneira ou de outra. Não há mais um pensamento dominante em termos de usos e costumes para as pessoas. Isso é relevante. Isso tem um impacto geral na sociedade. Cada um pode ser feliz do jeito que quiser, desde que não cause um dano a terceiro, uma coisa do gênero. E acho que o outro elemento que é muito importante nessa coisa de individualismo tem a ver com o gasto público já mencionado anteriormente, quer dizer, em termos de gasto público, houve desregulamentação da economia com Reagan e Thatcher, não houve por exemplo redução do gasto social. O que houve foi um aumento mais lento do que o que havia anteriormente. Então no fundo o que parece acontecer é que as sociedades têm sido, com o decorrer dos anos, sempre considerando o que eu falei anteriormente — claro que isso tem recuos; mas, no decorrer dos anos, ao fazer um balanço, você vê que as sociedades caminharam para a direita. Direita como a gente entende como direita mesmo, com a exceção do aumento do gasto público, que a gente não sabe onde vai dar. Porque aí é pressão da democracia, demanda social, algum tipo de ajuda para os mais necessitados, isso é praticamente inevitável. Mas, se você tomar a esquerda européia hoje, ela está mais à direita do que a esquerda européia há 20, 40, 60 anos. E muito provavelmente o meu raciocínio vale para a direita européia. Então as sociedades foram lentamente caminhando em termos de visão da relação entre o Estado e a sociedade e, só para falar disso — de novo, os EUA são um caso à parte, porque nós consideramos que o Estado é uma coisa, a sociedade é outra, e os americanos consideram que elas estão meio juntas, estão interligadas, eles são educados assim desde criança e nós não; uma coisa é o prefeito, outra coisa somos nós, nós vamos lá, pressionamos o prefeito, ele faz ou não faz, ao passo que o americano vê isso como uma coisa muito interligada — a impressão que eu tenho é que as sociedades foram lentamente, quando se olha a história de Europa, EUA, a própria América Latina, caminhando para a direita. O peronismo hoje — a Argentina é o que é, é um consenso entre nós — parece estar mais à direita do que na época de Perón, e a gente pode multiplicar os exemplos.
Amaury de Souza: Tem duas questões que me parecem estar no cerne do que estamos discutindo em Estado e mercado. A primeira, do Magnoli, “Como defender importantes valores liberais numa democracia de massa?” E a segunda, que o Viola colocou, a questão da institucionalidade global, quer dizer, a governança global. É a leitura que eu faço. Acho que são questões cruciais, que estão hoje na mesa. Eu não iria tão longe a ponto de dizer que o liberalismo já morreu — a própria preocupação com os valores liberais mostra que a batalha não terminou. A sociedade liberal oligárquica. Veja, desde o final do século XIX, início do século XX, temos uma versão liberal da sociedade de massas. Acho que é a essa que todos nós nos referimos na discussão. Direitos sociais, a universalização do voto, acesso à justiço e às oportunidades, e a igualdade das oportunidades. Existe aí um bom receituário liberal que já se fundiu com a idéia da democracia de massas, e digo isso para que não vejamos sempre a democracia de massas ameaçando esse núcleo de valores liberais. Esses valores estão presentes em várias das instituições com as quais lidamos dentro da democracia de massas cotidianamente. Mas a preocupação me parece altamente pertinente, e aí eu diria novamente o seguinte: a perspectiva de que esses valores estão ameaçados necessita explicitar uma alternativa a eles. Novamente, eu repito aquilo que eu não vejo em relação a um protecionismo tão agudo como o que sofremos logo após o crash de 1929. Àquela época tínhamos uma substituição de importações, que era uma doutrina que podia ser e foi largamente exportada. A partir da Europa Oriental, sobretudo Hungria e Romênia, que foram os países que enfrentaram mais de perto o impacto do fechamento do comércio internacional, eram os emergentes da época, foram os grandes pensadores que acabaram criando a nossa CEPAL, como Mihail Manoilescu, Georgescu, Rötgen… Foram os romenos que vieram para a América Latina com uma visão fascista, a bem da verdade — são dois modelos de fascismo desenvolvimentista por excelência, e que deram na CEPAL e na esquerda latino-americana. Mas era uma alternativa. Qual alternativa factível temos hoje à globalização? Com alguma base doutrinária e teórica. É o que eu me pergunto a respeito dos valores liberais. Qual alternativa? Que outros valores estão à disposição, digamos, no “mercado de idéias”? E, rapidamente, um comentário sobre o que o Eduardo falou. Claro, todos nós participamos da idéia de que a cooperação é sempre um instrumento desejável para alcançar fins que, afinal de contas, são desejados por todos. Por isso fiz aquela breve referência no início a que modelos usar para pensar isso. No caso de governança global, o problema é particularmente complicado, porque governança global significa produzir bens que sejam benéficos para todos, para toda a humanidade, todos os Estados, todas as sociedades. E aí caímos naquele velho paradoxo, muito conhecido de todos nós. Se todos são beneficiados, ninguém tem incentivo para produzir esse bem, e só existem duas maneiras de resolver o paradoxo da ação coletiva. O primeiro é inviável no plano internacional, que é coerção. Um Estado nacional pode obrigar todos os cidadãos a pagarem impostos, e com esses impostos produzir bens públicos, mas isso é uma solução coercitiva. A outra solução é pagar aquilo que os economistas chamam de incentivos laterais. Haverá um pequeno grupo que se beneficiará de um pagamento lateral e por isso vai produzir o bem público. Novamente, é uma solução difícil no plano internacional, mas quem sabe, por aí, possamos vislumbrar as chances de uma governança global.
Demétrio Magnoli: Acho que o que eu disse não vai ficar claro. No Estado liberal, o corpo político, a pólis, é restrita. Isso é o Estado liberal clássico. Ela é uma parte muito pequena da população. E, pelo fato de ser restrito, o corpo político é basicamente homogêneo — do ponto de vista econômico, do ponto de vista educacional, do ponto de vista de valores. Quando esse Estado liberal dá lugar a um Estado democrático de massas, na linguagem que estou usando, o corpo político é todo mundo, e assim ele deixa de ser homogêneo. Ele é essencialmente heterogêneo, do ponto de vista econômico, do ponto de vista educacional, e potencialmente heterogêneo do ponto de vista de valores. Sua pergunta foi: “Qual a alternativa aos valores liberais?” A tirania. A alternativa permanente num estado democrático de massas são os valores liberais de um lado, que podem ou não se integrar a um estado democrático de massas, ou a tirania. Essa é a alternativa desde quando se criou, em Roma, uma democracia de massas. Era a isso que eu me referia. O que eu digo é: nós não voltaremos ao Estado liberal clássico, e portanto temos o problema de saber como evitar a tirania no estado democrático de massas, que me parece ser um problema permanente, em todos os lugares, e que se coloca em função de cada questão.
Patrícia Carlos de Andrade: Voltando ao esquema que tínhamos desenhado entre nós, volto à primeira pergunta. “Os chamados valores asiáticos desafiam o modelo ocidental? Nós aprendemos o suficiente sobre eles? Deveríamos olhar com mais cuidado tais valores?”
Alberto Carlos Almeida: É difícil até saber quais são os valores asiáticos. A China é um grande exemplo. Quando você olha a história, quem venceu foi o mundo anglo-saxão. A Inglaterra criou o parlamento e criou a economia de mercado. Você pega toda a literatura sobre o tema, o que aconteceu no Leste Europeu nos anos 1990, o fim da URSS, dos estados-satélite… Teóricos da democracia escreviam, prevendo não a data, mas a implosão de um sistema daquele tipo. Robert Dahl, que todos conhecem, mostrando que, quando você faz com que a sociedade cresça — as sociedades tendem a crescer do ponto de vista econômico — você começa a gerar interesses diversificados e não haverá mais consenso com relação a quem vai governar e você vai ter dois lados, no mínimo dois partidos. Não sou especialista em China, obviamente, mas uma parte do desenvolvimento da China foi o que o Brasil passou no período militar: você tira as pessoas do campo, leva para a cidade, você simplesmente gerou maior valor agregado. Deixou de plantar e passou a produzir dentro de fábricas. Você vai começar a ter empresários, associações empresariais, sindicalistas, operários… Daqui a pouco esse pessoal vai dizer: “Não dá mais para ter a nossa representação só por um…” Para quem lê Dahl, isso está lá. Não dá para dizer quando aquilo vai implodir. Já ficou perto de acontecer, nos episódios da Praça da Paz Celestial e seguraram, agora estão segurando com… Se você deixa todo mundo satisfeito por muito tempo, você aceita qualquer coisa: crescendo muito… Todo mundo aumentando a renda, não interessa quem está lá, deixa lá. Mas daqui a pouco vem o dissenso. Nada disso é eterno. E aí como a sociedade já está se diversificando muito, eles vão dizer: “Vamos fazer um partido aqui, você faz um partido lá e aí agora vai ter de abrir isso daí”. Você está indo contra uma certa tradição da China. A China sempre viveu embaixo de autocracias, mas também vai contra tudo que a China sempre foi. Agora o capitalismo entrou, ou está entrando lá. Toda vez que a gente fala em valores ocidentais ou asiáticos — todo valor tem algum tipo de base social, em que sociedade estão esses valores. A Índia tem democracia. Mas aquilo é democracia mesmo? A eleição demora três ou quatro dias, porque é tanta gente para votar que não dá em um dia só. Agora, é uma sociedade de castas. Você não tem condição de passar de uma casta para outra. Aquilo não explodiu até hoje, e vai demorar a explodir, e quando explodir vai deixar uma longa herança, como o escravismo deixou no Brasil. Então esses valores têm de ter algum tipo de base social. O Japão passou em grande parte por isso. Você pode dizer que no Japão há uma economia de mercado, uma democracia liberal, cada uma com suas variações, a intervenção do Estado na economia, a formação dos grupos empresariais em torno de uma iniciativa estatal. Mas o Japão de hoje é uma sociedade muito mais liberal do que foi no passado.
[FIM DO DVD3/INÍCIO DO DVD4]
Amaury de Souza: … É uma visão difícil. Por quê? Primeiro, porque esses valores vêm mudando muito. Em segundo lugar, porque esses valores já mudaram muito no passado. Eu lembro do nosso caso – por “nosso caso” quero dizer “ibéricos”. Tivemos praticamente novecentos anos de dominação islâmica, e passamos por praticamente todas as grandes tendências do Islam. Fomos tanto sunnis quanto xiitas, e pior, com os Abazids (???) no poder, fomos fundamentalistas, quase wahabistas. O wahabismo surgiu muito mais tarde, mas fomos quase wahabistas na Península Ibérica, na antiga Andaluzia. Quase um milênio de dominação da cultura da Espanha e de Portugal pelos mouros, que eram muçulmanos… Quem tem que valores? Há um excelente livro, que recomendo a todos, chamado God’s Crucible, que ganhou o prêmio Pulitzer do ano passado, que mostra que a palavra convivencia, usada durante três séculos do califado de Córdoba, para descrever a coexistência entre cristãos, muçulmanos e judeus na Península Ibérica – não toda, mas na Andaluzia principalmente – , é uma palavra árabe. Uma palavra muçulmana. Então eu tenho dificuldade de pensar valores nesse nível. Portanto, se pensarmos valores no caso asiático, o único conjunto de valores que realmente me impressiona é a solidez da família. Inclusive da família extensa. Mesmo na China, nas áreas urbanas, você continua com o sistema de obrigações da família extensa. O que explica o fato de que você não tem crime na Ásia, a não ser crime político e violência étnica. Mas eu não vejo, além disso, em que os valores da Ásia, a não ser os valores de algumas elites, Coréia do Sul no passado, China hoje, possam efetivamente ter um impacto sobre nós.
Eduardo Viola: Está ótimo. O negócio dos valores asiáticos é do presidente de Singapura [N do Tr.: na verdade, o primeiro ministro], Lee [Kuan Yew], que foi o conceptualizador, digamos apologista, está vinculado à cultura confuciana – não à Índia, certamente. Eu vejo que certamente os valores asiáticos têm uma capacidade de coesão, de atração, no mundo asiático, pelas razões de que um dos fundamentos disso é como nas estrutura familiar as relações indivíduo x comunidade colocam um limite à diferenciação, ao processo de individualização forte e contínuo que se dá no Ocidente. Até agora a experiência asiática tem contido isso. Singapura é um regime muito estranho. Já é rico – esse seria o pequeno lugar que contradiz sua teoria ocidental de que o pluralismo econômico gera inexoravelmente pluralismo político equivalente, porque Singapura tem alto pluralismo econômico, mas o pluralismo político é limitado, mas ninguém quer fugir de Singapura, todo mundo volta a Singapura, as pessoas viajam e voltam e gostam de morar em Singapura. A minha resposta seriam duas coisas. Na minha visão, não são valores alternativos aos valores ocidentais, mas há componentes que desafiam e que nós não temos pensado o suficiente os valores de extrema diferenciação individual que são particularmente anglo-saxônicos. Porque, por exemplo, há convergência entre valores asiáticos não exatamente pelo mesmo fator com valores escandinavos, por exemplo, que são ocidentais. São valores em que a relação indivíduo x coletividade é uma relação em que o indivíduo se diferencia, mas essa diferenciação sempre tem um componente de horizonte forte do bem público coletivo, digamos. Nesse ponto, acho que precisamos… Numa situação como a atual, dadas as características da crise financeira, vinculadas às características do lucro, do sentido da vida dado por uma acumulação extraordinária de lucro de curto prazo e por uma fragilidade de caráter, sobre onde está a lei e onde se viola a lei… Estamos vendo uma quantidade de coisas impressionantes nesses últimos dias ou meses. Então há uma série de coisas em que vale a pena pensar, em que não temos prestado atenção o suficiente. Agora, eu não acho que os valores asiáticos sejam alternativos aos valores ocidentais. Mas essa metáfora asiática pode ter impacto via Escandinávia, digamos, sobre determinados exageros do Ocidente, e certamente são importantes para manter o diferencial da Ásia em relação ao resto. Num país super próspero, o Japão, a relação indivíduo x coletividade é diferente da do Ocidente.
Demétrio Magnoli: Acho que a palavra não é metáfora, é metonímia, porque os valores asiáticos acabaram sendo explicados agora como uma doutrina oficial de um regime de um enclave chinês internacionalizado no cantinho sul da Península Malaia, que é Singapura. Na minha opinião, dizer que os valores asiáticos são a doutrina oficial do regime de Singapura é transformar a Ásia numa cidade, porque os valores asiáticos não são chineses, por exemplo. Os valores asiáticos não são chineses. Que o regime chinês procure se apropriar dos valores asiáticos para legitimar a estrutura do Estado que existe na China é uma coisa. Mas, se se olhar para a história chinesa, vai-se ver que toda a história chinesa é a história de um conflito entre comerciantes e burocratas – existe uma burocracia confuciana, existe uma classe de comerciantes, e existe um conflito entre elas. E essa classe de comerciantes chineses tem valores extremamente individualistas, que vêm lá da passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Essa classe de comerciantes chineses povoou grandes partes da Ásia, no sul da China, e levou para esses lugares valores extremamente individualistas. Ocidentais, se quiserem. Esses mesmos chineses foram para vários lugares do Ocidente e levaram esses valores. Com isso não estou dizendo que existem valores universais que são anglo-saxônicos; concordo com sua observação, cada país tem a sua história e essa história moldou a sua forma de relação entre o indivíduo e a sociedade. O que eu não acredito é num conceito de valores asiáticos, que, de fato, é um discurso de Singapura, e do Huntington, num livro em que o Huntington não pretendia falar da Ásia. Ele pegou “os valores asiáticos” para preencher uma lacuna em um livro no qual ele precisava criar grandes conjuntos culturais para falar do único assunto em que ele estava interessado, que é o suposto conflito entre o Ocidente e o Islam. Digo “suposto” porque ele teoriza um conflito entre o Ocidente e o Islam. Mas como ele não podia criar só duas civilizações, o Ocidente e o Islam, ele precisava inventar outras. Então ele inventou uma civilização asiática, da qual sabemos que a Índia não faz parte, concluímos que a China não faz parte e chegamos à conclusão que é Singapura. Ele criou também a África, e os valores africanos, o que chega a ser fantástico, e só revela um grande desconhecimento das Áfricas, da extraordinária pluralidade da África. Então não acho que a gente tenha problemas com valores asiáticos, acho que os regimes asiáticos têm cada vez mais problemas com os valores chamados asiáticos. Porque as populações asiáticas adotam os valores que são os valores racionais que mais lhes interessam. O comércio, a liberdade econômica, e cada vez mais exigem a liberdade política. Meu tempo acabou, não vai dar tempo de explicar, mas eu quero contestar a idéia de que a Índia seja uma sociedade de castas e que as castas sejam algo muito antigo e muito tradicional. Não. A Índia é uma democracia. A Índia é uma grande democracia. As castas existem e são criações recentes. As castas, tal como se entende hoje na Índia, são uma criação recente; foram impostas por lei pelos britânicos na época colonial e mantidas por novas leis que foram criadas agora. E essas castas, legalizadas pelos britânicos há 100 anos, têm muito pouco a ver com as castas 3000 anos atrás que existiam na Índia.
Amaury de Souza: Só para acrescentar um pequeno ponto, Demétrio, as leis atuais que reforçam as castas são muito similares às leis de cotas.
Demétrio Magnoli: São muito similares. Quem inventou essas leis foram os britânicos. Os britânicos criaram um código que classificou todas as castas. Ninguém tinha uma classificação nacional das castas na Índia antes da colonização britânica.
Eduardo Viola: Em relação à Ásia e muitas das coisas eu concordo. A doutrina de Lee obviamente vigora em Singapura, mas ela é discutida, e tornou-se uma referência muito importante em todo o mundo Ásia-Pacífico. Não é uma coisa só de Singapura. Eu queria discordar de você sobre as castas na Índia. As leis de castas são recentes, mas a estrutura de castas está profundamente enraizada na Índia milenar e no hinduísmo. O hinduísmo é castas. Está super imbricado, e isso anterior ao império britânico, se não a qualquer coisa que fosse o Reino Unido.
Patrícia Carlos de Andrade: Teríamos ainda duas perguntas, que vou apresentar. Mas queria fazer uma proposta, para manter o horário e um diálogo aberto. Vou apresentar as duas questões e abrimos para o debate. Cada um leva em conta essas questões, mas também pode fazer seus comentários. Ficam para os debatedores que forem se inscrevendo e todo mundo. As duas perguntas que ficaram são: “Como se relacionam neste momento e no futuro próximo a crise e a mudança climática?”, algo interessante não só pelo assunto em si como também se conecta com a primeira resposta dada na mesa anterior, e “A queda do muro de Berlim representou a vitória das democracias de mercado. Para onde nos leva a atual crise?” E aí haveria três possibilidades. “Uma superação em dois ou três anos e uma volta ao cenário de dois ou três anos atrás” – uma simples visão da crise como mais uma crise, mesmo mais profunda, e aí é um pêndulo que volta; “uma volta parcial a antes da queda do muro, com sociedades mais centralizadas e autoritárias politicamente, incluindo a China como modelo para os países pobres e de renda média e, em terceiro lugar, um cenário novo, cujo perfil temos dificuldades de desenhar no momento”. Então essas são as duas perguntas que ficam na mesa. Fica em aberto quem quer falar, responder, comentar esses assuntos. Vamos lembrar que os comentários devem sempre ser rápidos.
Paulo Uebel: Em relação ao ponto que o Demétrio colocou, da democracia de massas, acho excelente ter uma preocupação permanente. No momento em que a gente tem uma democracia de massas, é fundamental discutir os limites da democracia. Se não houver limites, vamos viver numa ditadura das massas, em que as massas podem tudo. Para essa discussão no Brasil, como ela não existe, o poder público acaba tentando controlar os veículos de comunicação de massa e restringindo a liberdade de imprensa. Então é fundamental discutir a questão da democracia representativa versus a democracia direta, participativa, que é uma forma de potencializar a democracia de massas, e o segundo é também o conceito de igualdade perante a lei. No momento em que não existe igualdade perante a lei, também se está potencializando a democracia de massas. Então são duas formas de potencializar a democracia de massas que estão ocorrendo hoje no Brasil. Muitas pessoas desconhecem os perigos que isso pode ter para o futuro. Então essa é uma questão que eu queria lançar para a mesa.
Alberto Carlos Almeida: Essa coisa da democracia de massas é interessante. Acho que um dos emblemas foi a eleição de São Paulo, agora. Maluf já foi prefeito lá, já chegou em primeiro no primeiro turno, depois ganhou no segundo turno, depois nas eleições seguintes ele ia para o segundo turno e não ganhava, depois ele sequer ia para o segundo turno, e agora ele ficou, não sei, em quarto. O que isso significa na verdade? Condenações na justiça, todo o estigma… Mas existe uma coisa muito interessante quando você vê a mensagem do Maluf numa propaganda. Maluf foi eleito e reeleito no passado em função de obras viárias. O eleitor dizia “esse é o cara que eu quero, ele vai fazer obras viárias, uma aqui, um pouquinho ali.” O que acontece na cabeça dos eleitores de baixa renda? No decorrer do tempo, todo mundo sabe, a literatura mostra isso, que quando você aumenta sua escolarização, você liga sua ação política a um resultado concreto para você. Então as pessoas de baixa renda acham que não adianta participar da política, porque não vai trazer um resultado concreto para elas. E as pessoas de renda mais alta e mais escolaridade, ao contrário, acreditam. Não sei o que é verdade. São crenças. Nós aqui acreditamos que se a gente agir, fizer alguma coisa, vai haver resultado. Nem sei se tem, mas a gente acredita nisso. Quando o pobre melhora um pouco a escolarização, em que ele passa a acreditar? Ele passa a acreditar um pouquinho mais que o voto dele pode melhorar a vida dele. Enquanto não acredita muito, vota num cara de obras viárias. Quando passa a acreditar nisso, vota no Kassab – DEM, que fez toda a campanha baseada em uma política pública social: saúde. Que aumenta o gasto público etc, ele estruturou de maneira eficiente, mais privada, mas de qualquer modo tem de botar dinheiro público para ter a quantidade de serviços de saúde que ele colocou. Então o tema mudou. Isso é resultado de quê? Democracia de massas. Nós aqui somos minoria. Nosso voto conta menos. A maioria no Brasil – peguei o exemplo da cidade mais importante, mais populosa do país – tem demandas sociais. Seja o cara de direita ou de esquerda, ele vai ter de atendê-las se quiser ser eleito. Esse é um resultado concreto da democracia de massas e a gente vai ter de aceitar o fato de a gente ser minoria. Na verdade, se você pensar em ciclos, vai aumentar o gasto público voltado para o social até que um dia a população vai melhorar de vida e vai dizer: “Já não agüento mais a quantidade de impostos que eu pago pelo gasto público, vamos reduzir um pouco isso.” Todo mundo já passou por isso, em algum momento a gente vai passar. A igualdade perante a lei, é óbvio que o Brasil tem um problema grave em relação a isso. A gente fala de liberalismo sempre do ponto de vista do mercado, e gostaria que a população aderisse a isso. Mas a população vê que pessoas diferentes têm tratamentos diferentes, e quem está embaixo tem um tratamento pior do que quem está em cima. Então você tem um pilar fundamental do liberalismo em qualquer lugar do mundo, e aí veja, os EUA são, mais uma vez, a exceção, mas a exceção exemplar, que serve de régua – no Brasil isso está longe de ser aplicado. Então isso gera um problema de legitimidade, de aceitação do ideário liberal pela sociedade brasileira. É um fato. Qual a saída para isso? É complexo.
Paulo Guedes: Eu tenho a minha leitura, e acho que a bola vai para uma caçapa, que é a sua pergunta. Eu queria saber se é a caçapa onde vocês acham que vai cair também. A minha visão é a seguinte: houve uma síntese no lado ocidental. Você saiu do liberalismo clássico, entrou na sociedade de massas nos anos 1920, 1930, Espanha etc, duas grandes alternativas foram feitas, quer dizer, ou você ia para o socialismo totalitário ou para o fascismo, ou você ia para a social-democracia. Nós estamos num estado muito parecido com o que foi Weimar na Alemanha, que só tem social-democrata. Em cada eleição, ou eu voto num social-democrata sindicalista, que é o Lula, ou num social-democrata reformista, que é o Ciro Gomes, ou num social-democrata populista, que é o Garotinho… E a resposta não está ali. Porque ali tem um pedido das massas por recursos, recursos, recursos, mas não tem o outro lado, que é justamente o Estado de direito, as responsabilidades, a produtividade… O outro lado não está ali. Então depois de muito esforço a gente conseguiu fazer uma síntese. Pegamos, dos clássicos liberais, dos anglo-saxões, pegamos a economia de mercado, as democracias representativas… Pegamos das grandes religiões, do nosso tribalismo, realmente, o negócio do equilíbrio estado x indivíduo, nós somos animais sociais mesmo e gostamos de fazer coisas coletivamente. Não deixamos os feridos para trás. E isso foi a bandeira das religiões e depois do socialismo. Essa síntese já foi feita. No Ocidente essa síntese foi feita. O grande problema foi que quando acabamos de fazer essa síntese ela ficou irrelevante. É quase parecido com o que aconteceu no Brasil. Depois de 15 anos de Programa Cruzado, Cruzeta, congelamentos etc, quando acabou tudo isso, o pessoal que fazia isso já ficou irrelevante. Quem manda é a turma do Lula. Agora precisa de mais dez anos para ensinar o Mantega. Quando nós fizemos a nossa síntese ocidental, entrou um modelo que ameaça tanto do ponto de vista de ambiente ecológico e climático, quanto do ponto de vista do ambiente econômico. Ele racha ao meio nosso modelo. Quando nós finalmente fizemos a síntese, a China, que é a nova modalidade de capitalismo selvagem eurasiano, 3.5 bilhões de caras chegam e dizem: “Estamos sem encargos trabalhistas, estamos sem dissensões políticas, temos um governo único, um partido único, não temos legislação previdenciária, encargos, nada disso, e vamos vender geladeira a R$1. E quero ver quem agüenta.” Então o modelo que nós sintetizamos está ameaçado. Ferozmente. É sobrevivência econômica mesmo. E como é que nós vamos sair dessa síntese? E, ambientalmente, a mesma coisa. Quando a gente finalmente chegou à conclusão de que “tudo bem, vamos usar um carrinho mais econômico”, um bilhão de chineses compraram um carrinho. Então agora, mesmo com carrinho econômico, vai feder o planeta, vai ficar escuro mesmo, e daí? Para mim, a caçapa é o seguinte: esquece da volta ao passado socialista, mercado contra… Não é isso. É um negócio novo, de que a gente não tem muita idéia, e driven by Asia. Entendo um pouco o que o Viola falou no início com Singapura. É muito mais uma tentativa dele não de dizer… de onde foi possível uma pequena síntese. Quem sabe, se os caras fizerem mais ou menos desse jeito, não dá para acomodar essa pressão? Não é a caçapa do passado, não é a caçapa do… É um troço novo, que a gente não conhece. É como eu vejo.
Eduardo Viola: Eu concordo bastante com Paulo. A nossa síntese é mais relevante. O senso (???) da Ásia é um pouco menos poderoso do o que você coloca, você também concorda, é um certo exagero que você colocou, talvez. Agora, acho que há uma questão, do extremo problema da maximização do interesse individual, que gerou a dinâmica ocidental. As reformas liberais da década de 1980, que geraram muitas possibilidades de criar riqueza, geraram um excesso também, como foi colocado antes, e esse excesso é parte do sistema. Então de algum modo há uma questão aqui, está em jogo o quanto esse sistema – esses valores asiáticos, sob muitos aspectos, seriam um retrocesso muito grande para o Ocidente, em algum lugar podem ser parte de uma confluência civilizatória. Inclusive é o que falava o Paulo. Como Singapura pode se tornar um modelo e os chineses podem se comportar como Singapura em relação ao clima, por exemplo.
Amaury de Souza: Estou na mesma discussão. Mas voltando um pouco à pergunta que a Patrícia fez, que é: “Quais são as alternativas? Volta ao passado, uma volta parcial ou um cenário novo?” Acho que uma volta ao passado é difícil. Muito difícil. Em primeiro lugar, porque a posição relativa dos países mudou. Aquilo que ainda falávamos um pouco anedoticamente, os BRICs, com a crise que os EUA e a UE enfrentarão necessariamente nos próximos 24, quiçá 36 meses, é óbvio que vai haver uma mudança. Segundo, já houve uma mudança nesse particular graças ao Bush. Bush seguramente foi um dos presidentes norte-americanos que fez a maior abertura desses organismos multilaterais para esses países emergentes. Portanto ele reconheceu uma realidade de fato, e agiu. Acho que esse vai ser o legado mais importante da presidência dele. Estou me referindo não apenas ao G8, mas ao G20, não o G20 da OMC, mas o G20 da negociação com o G7. Enfim, várias áreas que se abriram fortemente. Portanto, não acho que seja possível voltar para trás. Uma volta parcial, sim, mas não necessariamente com autoritarismo. Talvez uma volta parcial com mais democratização. A razão é simples. Não sei quem falou, talvez Magnoli: a crise do petróleo atinge vitalmente as principais autocracias do momento: Rússia, Venezuela e os bolivarianos, além do Oriente Médio. Portanto, é difícil pensar que uma Rússia com um PIB que é um terço do PIB brasileiro, embora com uma capacidade de destruição de massa gigantesca, possa ser um ator tão crucial nesse momento a ponto de exportar seu modelo político. Duvido. A Venezuela será uma questão de, digamos, mais ano, menos ano já nos livramos dessa chatura aqui nas nossas fronteiras. Um cenário novo me parece também tão improvável quanto uma volta ao passado, mas estou disposto a considerar o seguinte: depende. Depende do quê? Se tivermos ou um desastre ecológico, ou uma mudança tecnológica de peso na área de energia, ou ambos. Se tivermos isso, aí sim, provavelmente um desastre ecológico aceleraria investigações e inovações na área de produção de energia, aumentaria a eficiência do uso de energia etc. Isso me parece que pode criar um cenário novo. Mas não creio que esse cenário novo virá sob o manto em que se quer vê-lo, que é uma espécie de utopia. Todos colaboraremos com todos, todos cooperaremos, vamos plantar, como os japoneses, jardins no topo dos nossos edifícios, tudo será verdade, comeremos pouco, andaremos de sandálias franciscanas… Não. Acho que o consumismo da humanidade voltar será impossível. Você pode fazer com que ela consuma muito produtos que poluam menos. Mas a essa altura do campeonato você tentar convencer os bilhões de indianos, de chineses – nem computamos aí os africanos – vai ser muito difícil, senão impossível. Portanto acredito que a resposta será uma volta parcial com alguma melhoria, mas nada tão extraordinário assim. O último ponto que quero lembrar é o seguinte. Até chegarmos nessas caçapas, como diz o Paulo, vamos ter o curto prazo, e o curto prazo é o que eu considero ameaçador. O curto prazo são os próximos seis a doze meses, quando a crise vai realmente bater para valer. Não só no Brasil, mas no mundo todo. Acho que um excelente exemplo que pode ocorrer é o que está ocorrendo na Grécia, essa revolta dos estudantes por uma razão absolutamente irrelevante, a morte de um adolescente por um policial. Tem uma reportagem que saiu na Economist dessa semana que eu recomendaria a todos. Leiam, mas substituam a palavra “Grécia” por “Brasil” e vejam como os paralelos são inquietantes. Acho que vamos ver muito disso antes de chegarmos à volta parcial ao passado.
Eduardo Viola: Ainda na resposta à pergunta, eu acho muito mais provável um cenário novo, e que é incerto, mas… O nível de alavancagem da economia mundial foi de tal dimensão, que o processo dessa alavancagem, segundo a maioria das pessoas, é ainda tão incerto, e gerou uma tal crise de expectativas e paradoxos de percepção que isso cria condições para um cenário novo do ponto de vista cognitivo e mental. E de outro lado a chegada de Obama, a equipe de Obama é impressionante. O secretário de energia é um prêmio Nobel de física que trabalha com energia solar e etanol de segunda geração. Prêmio Nobel de Física – isso é uma revolução. Um ministério chave num governo que disse que uma das questões-chave seria a segurança energética. Então há uma série de fatores, mesmo sem a crise ecológica dramática, só a percepção de que ela vem… Muitas coisas convergiram para criar a percepção de que estamos em um mundo diferente. O 15 de setembro de 2008 é um ponto de inflexão.
Alberto Carlos Almeida: Posso só falar uma coisinha do Obama? Uma observação que pode ser relevante. Quando ele fez aquele discurso na noite da apuração em Chicago, ele falou: “A mudança chegou à América”. Porque no fundo ele tem consciência – acho que o Merval andou escrevendo vários artigos, o Elio Gaspari etc dizendo que não tem mudança nenhuma, ele botou toda a equipe do Clinton. No fundo, quando se trata de política, o elemento simbólico é fundamental. Na política, o símbolo é um elemento-chave. E o Obama é um símbolo. Quando ele disse aquilo, ele tinha consciência: “A mudança sou eu. Eu fui eleito.” Acabou. Aquilo é a mudança. É um símbolo o Obama, ele pode botar a equipe que for, a equipe do Clinton… A mudança foi feita. O que acontece? Ele tem plena consciência do símbolo que ele representa, então ele terá de fazer alguma coisa. Se ele vai ter capacidade técnica, é outra coisa. Ele sabe quem entrou para a história nos EUA. Kennedy, Reagan, Clinton. Ele vai querer ficar na estatura desses. O que é que tem? Ele começa em condições, em função de ele ser um símbolo, de se colocar na estatura dessas figuras. A minha suspeita é que ele, para conseguir, ao final do mandato, que pode ser de quatro, pode ser de oito anos – se ele se tornar um símbolo, será de oito – vai ser alguma coisa externa. Internamente vocês aqui na sessão anterior fizeram o diagnóstico: tem um dever de casa para fazer, a coisa é complicada… Não tem muito o que inventar ali. Não tem mágica. Ele pode usar o fato de ele ser negro, toda a história dele, a biografia para se tornar um símbolo para outros países e com isso capitalizar algum tipo de negociação que vá além de negociações comerciais etc. Isso daí eu acho interessante. Isso é uma novidade. Vai ser muito interessante acompanhar qual será o comportamento dele em termos de política externa.
Aloísio Araújo: Estava tudo convergindo para uma democracia de massas, com alguns aspectos liberais e outros não, tipo os EUA como modelo, a Europa, a Espanha, alguns países na América Latina, alguns países estavam indo nessa direção e outros não… Mas agora, com o sucesso importante da China, acho que a gente pode parar um pouco no meio do caminho e alguns outros países irem por esse modelo. Alguém falou que a China é um país super liberal; eu não acho que a China tenha nada de liberal. É um país muito dirigista, tem alguns segmentos que dão para o mercado, para o investidor estrangeiro, outros estão extremamente limitados… Em toda a parte de infraestrutura o Estado é muito importante. Então tem uma divisão assim: aqui o mercado entra, não tem democracia, aqui o Estado permanece, alguma coisa mais híbrida, que fique muito mais tempo por aí. Por exemplo, o Brasil mesmo pode caminhar mais para um modelo desses do que um modelo muito mais liberal em todos os sentidos. Acho que tem atratividade, e a crise pode fechar a economia com protecionismos em alguns segmentos de mercado. É disso aí que eu tenho medo, de que a gente acabe não avançando tanto quanto poderia avançar devido a essa crise e ficar mais cristalizado no meio do caminho por muito tempo.
Platéia (Ademar Xavier?): A questão de uma governança, ou da necessidade de uma governança mundial. Uma governança mundial seria desejável? É desejável existir em largo escopo entre as nações uma possibilidade de uma governança e uma governabilidade mundial? A História registra insucesso em tal empreendimento. Conseguimos de forma fraca e ineficaz constituir uma ONU, uma OMC de certa forma, uma OEA. Isso no entanto é desejável de um ponto de vista, ou seria nos valores liberais mais interessante um arcabouço mais frouxo, mais não-tão-apertado. De certa forma eu revivo a polêmica Inglaterra versus Europa continental ainda na época do Tratado de Maastricht, por volta de 1993, 1992, (??? 35min) discutia muito isso, como designer. Coloco essa provocação para a mesa.
Amaury de Souza: Acho essa não só uma questão provocativa como uma questão muito importante. Não sei se vou ao extremo de questionar a existência de uma OMC, acho que ganhamos muito com a criação da OMC. Alguns aspectos multilaterais de governança são desejáveis. Mas, obviamente, uma governança global, com o peso que se lhe dá ao anunciá-la, não. É aquilo que eu lembrava: a cooperação pode ser obtida de duas formas. Ou pela coerção, ou então um pequeno núcleo se sentir suficientemente recompensado por outras razões para produzi-la. Historicamente o que nós temos são impérios, uma solução coercitiva para fazer tudo aquilo que seria bom ter uma governança global, são bens públicos, foram impérios. Uma solução que me parece hoje inexequível. Por outro lado, a solução de grupos de países que se organizem em várias áreas para liderar o processo da produção do bem público me parece perfeitamente atual. Por essa razão não me parece necessário expandir muito, ou mais, ou até mesmo manter certas organizações internacionais. Acho que o caso clássico aqui é o problema do Conselho de Segurança da ONU. De que adianta ter um Conselho de Segurança que não atua? Que é na verdade um clube de vetos? Eu via na TV há pouco, há uns dias, a questão do Congo. A força militar da ONU estacionada perto de um acampamento que estava sendo massacrado. Qual o uso disso? Discutiu-se muito nos EUA a criação de uma liga de democracias, isto é, países democráticos que fariam a sua intervenção militar em vários casos, inclusive em casos humanitários como esse. Ou seja, já existe um debate a respeito de se manter determinadas organizações internacionais. A força da tradição não é o suficiente para legitimar a existência delas e dou como exemplo, mais uma vez, o Conselho de Segurança da ONU.
Alberto Carlos Almeida: Só um segundo, uma resposta muito rápida. Eu imagino que isso seja mais um mecanismo de coordenação – todas essas organizações, governança global, organismos supranacionais, Comunidade Européia – para atender a uma demanda das sociedades que é puramente de bem-estar. A questão é se a sociedade prefere aumentar o bem-estar e ter menos liberdade, ou simplesmente as coisas estão vindo juntas. Mas creio que isso seja muito mais uma questão de coordenação. Não há poder coercitivo. Não tem por que não ser uma coisa desejável, uma vez que venha a aumentar o nosso bem-estar.
Eduardo Viola: O drama é que essas instituições são muito fracas e não têm poder coercitivo. A escala da globalização, a intensidade da globalização é extrema. E nesse contexto instituições à altura são necessárias. As instituições globais que existem hoje são muito ineficientes. Algumas inclusive com componentes importantes de corrupção. Mas uma coisa que vejo como cenário de governança global é uma possibilidade de um acordo sério entre os grandes players em uma série de questões-chave. Eu estudo muito a questão climática, que nesse contexto é G8 + 5, digamos assim. São os grandes players do ciclo global do carbono no tempo da economia mundial. Parece-me que algo parecido vale para finanças internacionais. Então se um clube desse tipo… Na teoria dos jogos, poucos jogadores conseguem negociar com mais precisão as concessões, e não o mínimo denominador comum que é a lógica da ONU, isso cria uma estrutura regulatória internacional, que será de direito internacional. Isso não cria um governo mundial, mas requer um nível de cooperação intergovernamental como até agora não houve nesse plano. Esse é o cenário que eu vejo de construção de governança global. Não é mais ONU, não é mais a OMC como está, porque a lógica do mínimo denominador comum não corresponde à lógica da globalização. O mundo já está muito compactado, e de altíssima interdependência. E aí há uma série de agentes, estados-nações chaves, que podem construir regras de jogo à altura dessa interdependência que já existe em termos de matéria e energia no mundo.
Aloísio Araújo: O que a gente deixa de reconhecer é o que a gente conseguiu de muito positivo. No pós-guerra, a OMC conseguiu um nível de integração econômica fabuloso. Embora haja problemas de falta de coordenação, de equilíbrio de Nash, dilema do prisioneiro, o que é ruim etc, conseguiu-se uma coisa notável. Se alguém fosse prever que daqui para a frente o mundo vai por isso aí, pouca gente ia achar que não ia ter… Essa globalização não veio à toa, veio porque houve corte de impostos, essa última rodada todos os impostos têxteis e se avançou muito por aí. Isso que eu tenho medo de perder. É aí que eu discordo um pouco do Amaury: ele acha que a substituição de importações não é uma coisa factível. Estou de acordo com você, é uma coisa tão radical, não. Mas se começar agora a cada um aumentar um pouco os impostos, a diminuir o comércio da China com os EUA… Há um longo caminho de perdas pela frente. A desconstrução da OMC pode levar a perdas econômicas muito grandes.
Hector Leis: Um comentário rápido sobre os cenários possíveis. Achei interessante, nos cenários que Patrícia colocou – tudo igual, um pouco mais de autoritarismo, ou algo novo. Fico pensando em porque não incluímos alguma combinatória com a questão do populismo. Especialmente na América Latina, nós sempre pensamos o autoritarismo como uma espécie de derivação de uma situação econômica em crise, aí vem o autoritarismo. Mas podemos ter um novo populismo, um populismo de crise também. Ou seja, não apenas o populismo que dá as benesses de um momento de crescimento, mas o populismo que distribui apenas valores simbólicos, valores simbólicos da pior qualidade, obviamente. Então essa combinatória de autoritarismo mais populismo, ou populismo mais autoritarismo, que pode se dar dentro de um regime constitucional, na América Latina é possível, e seria o pior dos cenários. E acho que é um cenário em que nós temos que parar para pensar. Pois já temos populismo em vários países, temos uma consolidação democrática muito precária, ou não temos consolidação. E pode voltar uma combinação entre um populismo – por exemplo, a Argentina sempre está mais tentada a fazê-lo, não é um populismo de direita, pode ser até um populismo de esquerda, mas é um populismo autoritário. Acho que temos que pensar um pouco melhor não apenas este vínculo entre Estado e mercado, mas este vínculo entre os efeitos da crise econômica em democracias não-consolidadas que têm gerado populismo mas que podem se combinar agora com o autoritarismo, o que pode prejudicar o nosso futuro de uma forma bastante radical. Gostaria de colocar essa questão.
Alberto Carlos Almeida: Só queria fazer uma pergunta de volta. Como você conceituaria populismo? O que é o populismo? Esse é um tema de que a gente sempre fala, mas ninguém diz o que é.
Hector Leis: Há muitas formas de definir o populismo, mas acho que uma forma de pensar o populismo é a criação da legitimidade do poder sobre a base de uma lógica acentuada de amigo e inimigo. Isso pode ser dentro de uma democracia, a gente não tem de imaginar o fascismo ou o comunismo para imaginar uma divisão da sociedade política. A democracia precisa de que a lógica do amigo seja superior à do inimigo. Sempre que vem o populismo, diz: “esses são os inimigos”, e divide a sociedade. Claro que o populismo para fazer isso precisa fazer clientelismo, dar coisas etc. Mas a jogada principal do populismo é sempre simbólica, na minha forma de ver. Então, construir sempre a base de apoio, dividindo a sociedade, e dando alguma coisa – pode ser algo econômico, também pode ser uma guerra, prometendo um ganho simbólico importante. E, claro, a base é construir uma relação especial entre a massa e as lideranças, através de todo esse processo. O populismo tem de ser pensado como uma doença da democracia. Ou seja, como a degradação da relação de presentação. Essa é uma coisa pouco trabalhada também. Costumamos pensar o populismo como relação da massa em função do líder ou do líder em função da massa. Mas o populismo é um efeito da degradação da relação de representação, de uma relação de representação autêntica, ou seja, a democracia precisa pensar-se como democracia de representantes; quando se degradam as instituições, aí aparece o populismo.
Alberto Carlos Almeida: Sempre penso em termos de alternância de poder, quer dizer, se você tem um populista que adota essa coisa de o inimigo é mais importante que o amigo, tipo o Chávez na Venezuela… Se ele algum dia sair do poder, saiu o populismo do poder. Se você tem a chance da alternância… Vem um outro governo. [Hector faz uma intervenção quase inaudível, fora do microfone; entende-se que fala em peronistas.] Lembro que quando o Lula foi eleito houve uma sensação muito grande na Argentina, a imprensa… A primeira eleição do Lula, os argentinos queriam ter um Lula presidente etc. A Argentina deveria querer ter um PMDB. O grande problema da Argentina é não ter um PMDB, que é um partido de centro que vai possibilitar a existência de qualquer governo. [Hector] Sempre tenho dificuldades com a terminologia populista. O americano utiliza o termo “populismo” como algo positivo, nós utilizamos como algo negativo. Alguns falam em populismo fiscal, outros falam em relação direta com o líder… É um conceito nebuloso, conceitualmente é difícil lidar com a noção de populismo. Se tem alternância de poder – a Argentina não tem, os governos peronistas terminam, os governos radicais não terminam, o mandato é sempre abortado. Então se você tem uma democracia que tem uma alternância de poder, você vai ter uma alternativa em algum momento, como está tendo o Chávez agora, perdeu a eleição nos principais centros etc. O gato subiu no telhado. Existe um livro que ganhou um prêmio, a melhor tese de ciência política nos EUA em 2000, um dos autores é brasileiro, Fernando Limões, da USP, que mostra que a partir de… Não lembro o número, mas eles fez várias regressões, com democracias, ditaduras etc, você tem um nível… Países que têm renda per capita abaixo disso podem cair em ditadura; países que têm renda per capita acima disso não caem mais em ditadura e nunca voltaram atrás. Existe um dado científico que diz isso. Essa relação entre desenvolvimento econômico… Toda regra tem uma exceção, mas acho que essa tinha pouquíssimas. Eram 300 casos, um negócio estúpido, desse tipo. Então, quando a gente pensa, sei lá, no Brasil, o Brasil já passou disso, está lá na frente… Os interesses aqui são muito diversificados. Você não vai ter um consenso entre a nossa elite econômica e política de que você possa fechar o regime, fechar o Congresso, com todas as críticas que nós temos a ele etc. Simplesmente vai estar lá, para o bem ou para o mal, porque é assim que se resolve o conflito num país que tem uma renda per capita acima de tanto. Então é olhar para esses países e ver se isso está acontecendo. “Vamos tirar o coelho da cartola e vai acontecer isso ou aquilo.” E no resto, tenho dificuldade – daí ter devolvido a pergunta – , como você mensura o populismo? Como você mede o populismo? Por que um país é mais populista do que outro? Como você mede? É a frase do Lord Kelvin. Se você não pode medir, aquilo pode ser até conhecimento, pode até ajudar, mas não se chega ao nível da ciência. Tenho dificuldades de mensurar o populismo, o que é o populismo.
Amaury de Souza: Sem entrar na definição do termo, acho que a preocupação é uma preocupação legítima, porque basta olhar os anos 1990. Nos anos 1990 estávamos absolutamente certos de que todo o ciclo de reformas liberalizantes continuaria, os países teriam uma taxa de crescimento econômico muito mais alta, as populações seriam beneficiadas, e a democracia se consolidaria em toda a América do Sul. Olhar fundamentalmente o nosso entorno. Precisamente onde as reformas tiveram um belo sucesso foi onde tivemos a reversão mais radical: Bolívia. Não, Chile, Chile. [Intervenção de Paulo Guedes, ininteligível] Você está certo, no Chile continuou. A Bolívia fez reformas sérias, Paulo. Fez. Um país que você poderia dizer excessivamente primitivo para poder se beneficiar daquilo. [Paulo Guedes “radicalmente contra” alguma coisa.] Acho que estamos de acordo, você está atirando em outro alvo. Estou dizendo que a Bolívia fez reformas…
Paulo Guedes: Só estou dizendo o seguinte: cuidado com os bastardos, no sentido econômico.
Aloísio Araújo: Cita a Argentina. Muita reforma… A Argentina é um caso mais forte para você. Eu concordo…
Paulo Guedes: Você acha que é uma economia de mercado ficar com o câmbio fixo cinco anos, seis anos, como eles ficaram na Argentina? Quebraram a Argentina!
Aloísio Araújo: Não se deixou as reformas amadurecerem na Argentina. Mas pelo menos é um caso mais interessante. A Bolívia não fez quase nada. Agora, a Argentina, estou de acordo, teve câmbio fixo muito tempo, as reformas que foram feitas na Argentina foram importantes, mas ela não fez a reforma fiscal. Fez a reforma micro importante, mas não a reforma fiscal. Eles não conseguiram ter uma lei de responsabilidade fiscal.
Paulo Guedes: …sistema econômico inteiro com depósitos em dólar. E aí o dólar, seis anos depois, sobe. Quebrou o sistema bancário todo. Quebrou a previdência, quebrou tudo. Aí você pega um burocrata sentado em cima de um preço chave, e fala assim: “O mercado não funciona.” Peraí. o mercado já tem seus pecados. Não vamos imputar ao mercado erros primários. Eu vou ao banheiro.
Amaury de Souza: Você pode ao menos escutar o que eu falei?
Paulo Guedes fora do microfone… “Reformas radicais, Chile…”
Amaury de Souza: Outros que foram atropelados a meio caminho… Bolívia. Não falei por causa das reformas, Paulo. Disse que você tinha uma expectativa, na década de 1990… Então me ouça; do contrário vamos ficar numa discussão semântica… Concordamos. Onde concordamos: havia uma expectativa na década de 1990, e essa expectativa existiu como projeto e como vários movimentos na direção certa. Onde se deu a primeira reversão mais drástica na política? Bolívia. Isso é o que eu disse. Óbvio que todos concordamos que onde avançou mais foi no Chile. Outros países continuaram avançando também. Mas o que tivemos na expectativa dos anos 1990 foi uma forte reversão. Por que se deu isso? Essa é a pergunta. Isso é que leva à preocupação do Hector.
Aloísio Araújo: Posso fazer uma observação aqui? Todos esses países aí não fizeram uma reforma fiscal séria. O Brasil ao menos teve a responsabilidade fiscal que foi uma maravilha, isso que está permitindo à gente andar um pouco. Você começou a fazer uma reforma fiscal. A Argentina não fez nada. Então você fez algumas reformas micro na Argentina, muito radicais, você tem de reconhecer isso, mas como ela não fez a reforma fiscal foi tudo para o espaço. Acabou.
Paulo Guedes (fora do microfone): A social-democracia… Segura o câmbio, congela preços, mexe aqui… “O mercado não funciona, nós tentamos tudo”. São idiotas. Qualquer programa de estabilização sério e sensato dura um ano e meio. Dois anos. Os juros não baixam. Você está há 20 anos com juros altos no Brasil. Por quê? É o que o Aloísio falou. Qualquer dois economistas preparados falam assim: [ininteligível]. A parte fiscal. Agora, você não faz a parte fiscal, você congela preços, aí depois você congela o câmbio, aí no final você fala: “Está vendo? O mercado não funciona. Tentamos e não funcionou.”
Amaury de Souza: Você não ouviu essa frase de mim.
Paulo Guedes: Eu sei, eu sei. Eu ouvi a seguinte frase: “Na América Latina, justamente os países que mais avançaram nas reformas foram os que falharam.” Aí eu subi [o dedo, faz um gesto].
Amaury de Souza: Agora, veja, Paulo. Você não pode exigir. [??? 55min30s] As reformas que foram feitas, as tentativas de reformas em alguns casos, estavam erradas. Isso é outra conversa. O que eu queria me referir era, quando o Hector dizia, “eu tenho uma preocupação com a volta de regimes populistas e autoritários na América do Sul”, eu montei um quadro dizendo o seguinte: pois bem, você teve na década de 1990 um processo de reformas indo na direção errada ao não começar pelo fiscal, poderia acrescentar com tranqüilidade. Mas havia uma expectativa de que tudo caminhasse numa determinada direção. Reformas, crescimento econômico, consolidação da democracia.
Paulo Guedes: Sabe por que nunca começou pelo fiscal? Porque os implementadores são sociais-democratas. Eles nunca acreditaram nisso. Continuam gastando até hoje. Não dá para xingar o mercado.
Amaury de Souza: Isso é relevantíssimo. Mas não era a minha discussão, nem onde eu queria chegar. Eu estava falando em reforma e consolidação da democracia. E ia acrescentando, talvez numa frase infeliz, que você pegou no ar, que aqueles que mais avançaram foram os que tiveram as reversões piores. Você diz: “Chile não”. Concordo. A frase foi exagerada. Podemos retomar? Então, por que tivemos esta reversão? Mais ainda, esta reversão é nova? Porque, novamente, e aí quem sabe a observação do Alberto sobre usar o termo populismo seja perigosa, ela é tão perigosa quanto dizer que hoje o que caracteriza a América do Sul são os movimentos sociais. Se você olhar toda a história do século XX, tivemos outra coisa que não ciclos e contraciclos políticos? Populismo, movimentos sociais… Você quer uma revolução mais do que, novamente, Bolívia em 1950? Portanto, acho que você tem uma questão aqui de… É preciso considerar, ao fazer essa discussão, aquilo que você acrescentou depois da intervenção do Alberto, que é a qualidade dos sistemas democráticos que estão sendo montados em vários desses países. Quando falamos em democracia, todos nós entendemos democracia representativa. Ou seja, você tem um conjunto de direitos políticos, você tem um conjunto de instituições que sustentam aquilo que é o último, o pináculo de uma estrutura democrática, que é a alternância no poder. Quando se tem, como se tem hoje em dia, apenas a alternância no poder, ainda assim sujeita a reeleições sucessivas, é claro que você não tem um quadro democrático sustentável ou de qualidade. Mas o simples fato de que você tenha na América do Sul uma pressão para que você tenha alternância de poder já mostra que você teve, também no plano das instituições democráticas, um avanço. Portanto, esta virada dos anos 1990 não é uma virada definitiva, de que se possa dizer: “Bem, estamos todos caminhando em direção a um modelo populista, autoritário”, ou que isso é uma ameaça forte. Porque a alternância de poder se tornou uma condição sine qua non de qualquer governo na América do Sul. Vai mudar? Pode. Pode mudar. Mas o quadro, digamos assim, de circunstâncias que seguram a volta de governos ditatoriais a meu ver é muito forte. Voltaremos a um processo democrático mais institucionalizado? Eu chamaria a atenção apenas para o seguinte: em todos os casos em que tivemos essa chamada democracia popular ou democracia direta ao estilo bolivariano, em todos eles o que vimos ao longo dos anos foi a criação e o crescimento de uma oposição muito mais institucionalizada e muito mais aguerrida. É o que vem acontecendo em todos esses países. Portanto, acho que a perspectiva de médio prazo não é tão ruim.
[FIM DO DVD 4 / INÍCIO DO DVD 5]
Héctor Leis: Na minha forma de ver, o populismo não constitui um regime que está associado ao autoritarismo, ou ao fascismo, ou a uma coisa particular. Constitui uma degradação. Por isso falei em doença, aliás. Uma degradação da democracia representativa em qualquer lugar. Pode ser em direção ao autoritarismo, à perversão das instituições, a colocar os homens acima da lei — você escolhe. É um hábito político, por isso sempre está latente. Ou seja: um país que passa pela experiência do populismo sempre tem latente a possibilidade de voltar. Então, frente a essa crise, não é pelo fato de haver uma reforma fiscal que a gente está blindado contra o populismo, nem nenhuma reforma econômica, ou seria um reducionismo econômico. Não há nenhuma reforma econômica que nos blinde em relação ao populismo. O populismo sempre está nos horizontes. Por isso a gente nunca pode descansar em relação a ele. Se é verdade o que ficou claro para mim desta mesa, é que não vamos ter uma governança global fácil, a menos que o populismo aumente com isso, porque a única garantia que nós temos, em países periféricos, com dificuldades econômicas, com democracias em consolidação, é ter uma governança global forte. Se nós não temos isso, o populismo pode ter sua chance.
Alberto Carlos Almeida: Eu só queria enfatizar novamente a minha dificuldade com o termo. Weffort escreveu um livro: O populismo na política brasileira. Otaviano escreveu um livro, Populismo na América Latina. O termo é utilizado de maneira muito frouxa. Uma das minhas especialidades é medir. O primeiro passo para se medir — medir o jeitinho brasileiro, você tem de definir o que é aquilo. Preciso de uma definição clara. O que é o populismo? O inimigo é mais importante que o amigo? Qual a importância disso para Hitler? É preciso uma definição. A gente fala em qualidade da democracia. Alguém sabe como funcionava a Venezuela antes do Chávez? Não estou defendendo o Chávez. Havia dois partidos, ADECO e COPEI, e toda a vida venezuelana era estruturada em torno deles. Sindicatos, eleição para a Câmara Federal, eleição de clube… Isso era boa democracia? Aí vem um cara que pega o voto das massas — meu esforço é de simplificar a realidade sim — , que faz um programa Bolsa-Família, chamado Misiones, e que tem uma relação direta com o povo. Então ele é populista, nós é que não somos? É complicado. Ele joga para a platéia internacional, faz aquela coisa toda, viaja… Um sujeito midiático. E que algum dia vai levar um chute e vai sair. Alguém vai voltar. Ele perdeu um plebiscito para ter várias e várias reeleições. Então não é um autoritarismo puro e simples. Ele foi derrotado nas urnas. Acabou de ser. Agora. Mais uma vez. Então alguma hora vai voltar um que não seja populista, seja lá o que populismo signifique.
Patrícia Carlos de Andrade: Uma pena que chegamos ao fim. Só queria fazer um apelo, porque, com experiência de 4 anos no Instituto Millenim, nunca sabemos o que vai dar certo numa reunião. A coisa parece toda muito legal, começa muito bem, bem planejada, confirmada, e não dá certo. Esta, que foi organizada em duas semanas, a meu ver foi muito produtiva, muito boa, cumprindo o objetivo que tínhamos de criar um diálogo maior, de ser algo mais dinâmico. Nós temos o desejo de estabelecer o Instituto Millenium como um fórum para esse tipo de reunião, uma reunião de pessoas que se sintam à vontade, para falar livremente sobre os assuntos, sem estar diante de um público ou das câmeras. Acho que dessa reunião surgiram assuntos que claramente podem ser aprofundados em outras. O apelo é que as pessoas que estão aqui e participaram do debate o continuem, porque isso é possível pela internet. É possível, mas é sempre tão difícil que não sei onde está a questão. Que a gente consiga, a partir do trabalho desse material, que gravamos, e que vamos trabalhar e circular, que a gente consiga, numa próxima reunião, que já queremos deixar marcada para março, e assim sucessivamente, sendo essa a primeira, a gente escolha um tema sobre o qual todos passem um tempo maior refletindo, seja um tema que venha naturalmente do que as pessoas estão se preocupando, porque acho que isso gera um sentido de ligação entre essas pessoas aqui mais de longo prazo, que é uma coisa que, honestamente, até hoje não conseguimos. Temos vontade, mas conseguir mesmo não conseguimos ainda neste grupo que nós chamamos de Instituto Millenium. Tem uma força já, as pessoas identificam muito do que nós representamos, mas é preciso o engajamento mais freqüente de quem forma essa opinião no final, e que se identifica conosco. Pode haver uma variedade de posições, mas todos sabemos o que nos traz aqui. Nós, do Instituto Millenim, teríamos a função de botar esse material já um pouco trabalhado à disposição e dali tentarmos instituir um debate mais amplo que resulte, a cada 3 ou 4 meses, numa reunião como essa, que vai sempre amadurecer e se tornar melhor. Essa aqui foi uma surpresa para mim, porque a montamos em duas semanas, no difícil mês de dezembro e fiquei muito satisfeita. Agradeço a todo mundo. Pela presença e pela participação, muito boa, em todos os assuntos tratados. Obrigada.
[FIM DO DVD 5]
Nós homens já governamos muito nosso país tentando melhorá-lo.Não conseguimos,por-isso digo chegou a vez das mulheres tentarem.Por-isso peço ajudem a Dilma a se eleger,vamos ver o que a mulher faz na presidencia.Dilma será a 1ª mulher na presidencia.