Autor Convidado: Mauro Godoy Prudente
O enfoque deste artigo versa sobre a atual conjuntura sociopolítica do Brasil. A descrença nas instituições em geral, a corrupção na política, o crime organizado, a violência crescente nas relações interpessoais, a insegurança coletiva, dentre outras mazelas quotidianas, são fenômenos sociais patológicos examinados a partir de suas relações com a cultura e suas instituições normativas. Essas últimas, como todos sabemos, são os agentes responsáveis pelo regramento da vida social. Quando essas instituições entram em crise, as relações sociais em geral perdem seus elementos de referência. É para elucidar melhor a imbricação entre as ações humanas e suas instituições normativas, que este artigo inspira-se, do ponto de vista teórico, no aparato conceitual e nas reflexões sociológicas de Émile Durkheim. Segundo este autor, uma sociedade é um ser plural que pode ser definido pelo conjunto de idéias comuns (valores, crenças, costumes, normas de conduta) que unem os seus membros, distinguindo-os dos integrantes de outras coletividades. No conjunto das representações coletivas (termo técnico cunhado por Durkheim para as idéias comuns), responsáveis pelo controle social sobre as condutas dos indivíduos, destacam-se os valores éticos. Quando esses valores perdem a sua função de paradigmas para as condutas pessoais, como veremos a seguir, a sociedade passa a viver um período de anomia, termo utilizado por Durkheim, para expressar os períodos de crise moral, que se traduzem pela falência do nomos ou ordenamento social em geral (ético, jurídico, político). Ora, um diagnóstico mais acurado do laxismo que se instalou em nosso país, tanto nas instituições políticas republicanas, quanto na chamada “sociedade civil”, revela, com toda a dramaticidade, seu caráter cultural. Quando uma grande parcela de indivíduos (no mundo público ou privado) não observa, e se observa, não leva em consideração em seus atos, as distinções clássicas entre o bom e o mau, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, têm-se uma crise do éthos. Essa situação anômica, que dispensa exemplos (dada a sua profusão), atinge hoje um caráter epidêmico, contaminando o conjunto das relações sociais. Na verdade, é o mais importante sintoma do colapso dos valores fundamentais que guiam as condutas das pessoas, tanto no domínio da moralidade privada, quanto no domínio da moralidade pública (tomando-se, neste contexto, os termos – ético e moral – como co-referenciais: o primeiro, representando as regras estabelecidas no éthos; o segundo, representando a conduta efetiva do agente a partir dessas mesmas regras). O resultado deste processo tem sua expressão, como vimos acima, no aumento da violência, da corrupção, da insegurança e da falta de autoridade. Mas, afinal de contas, o que são valores éticos? De um modo sucinto, pode-se dizer que os valores estabelecem os fins últimos para as ações humanas com sentido moral. Na qualidade de fins últimos, não podem servir de meios para outros fins. Portanto, são os bens éticos mais importantes e auto-suficientes, tendo a função de estabelecer um significado para todo o discurso ético e, por conseqüência, para toda e qualquer conduta humana orientada para os demais membros da coletividade. Jean-Paul Sartre assim se expressa sobre eles, em sua Conferência sobre o Existencialismo: “A vida não tem sentido a priori. Antes de viverdes, a vida não é nada; mas de vós depende dar-lhe um sentido, e o valor não é outra coisa que esse sentido que escolherdes”. O homem difere dos outros animais na medida em que não age ao sabor do acaso ou do instinto. Ao contrário, somente ele é capaz de representar fins para a sua conduta e voluntariamente buscar atingi-los. E os fins últimos, que estabelecem o significado, tanto para a existência individual, quanto para a vida coletiva, são criados pelos valores. Como diz o sociólogo Peter Berger: “Os homens são congenitamente forçados a impor uma ordem significativa à realidade”. No mundo ético, onde são estabelecidas as regras que irão reger as condutas entre os membros da comunidade, os valores – como foi dito acima – são os parâmetros para os atos com sentido moral. São os valores, em última instância, os responsáveis pela produção de uma visão integrada e coerente da moralidade individual. Eles produzem um ordenamento da realidade social, definindo o que seja a “vida boa” (conjunto de fins que são eticamente aceitos para as ações humanas) e estipulando uma determinada qualidade para cada ato humano com sentido moral, ao fixar a distinção entre: o bom e o mau, o certo e o errado, o justo e o injusto, o excelente e o vil, o correto e o incorreto. Aderir a uma ordem social é, em última instância, aceitar e reproduzir condutas orientadas por valores. Em analogia com uma pirâmide, os valores estão situados no vértice do mundo ético; é a partir deles que são construídos os princípios éticos, jurídicos e políticos; deles derivando, o conjunto de regras que orientam as condutas individuais. Miguel Reale, comentando em artigo sua Teoria Tridimensional do Direito, diz o seguinte: “Fatos, valores e normas se coordenam em unidades concretas de ação, as quais se confundem com a própria experiência jurídica. (…). A essa luz, os fatos sociais, que estão na base das regras de direito, não se explicam uns pelos outros de maneira empírica, segundo relações causais de caráter determinista, mas são o resultado de valorações daqueles fatos na forma de estruturas normativas, ou, por outras palavras, de modelos jurídicos, cujo sentido é dado pela integração dialética desses três elementos”. Os valores do Ocidente foram herdados de uma dupla fonte: Civilização Greco-Romana clássica e Cristianismo. Foram os gregos, e mais tarde os romanos, que legaram os valores da civilização ocidental e de seu produto histórico, a civilização latino-americana. Para Platão, na esteira do pensamento de Sócrates, a justiça era o valor fundamental que deveria nortear, como fim último, os atos humanos no mundo da moralidade. Seu discípulo Aristóteles erigiu a felicidade como a finalidade última dos atos humanos, sendo a moralidade um de seus elementos constituintes. Dentre os filósofos modernos, Hobbes alicerçou sua filosofia política sobre a segurança; Locke, por sua vez, estabeleceu a liberdade como valor supremo a dar significado para a vida em coletividade. Mais tarde, com a Revolução Francesa – e o pensamento socialista de matriz rousseauniana dela derivado -, a igualdade passou a ser o valor político por excelência, a inspirar, tanto os reformistas, quanto os revolucionários sociais. Filhos do tempo, os valores vão sendo transmitidos por um processo de difusão cultural e adaptados às sociedades que os recepcionam. Assim, tal como ocorre com qualquer idioma, onde novos termos surgem e outros caem em desuso, no mundo ético, novos valores vão sendo criados e os antigos valores vão sendo reinterpretados pelo dinamismo da vida social. Porém, os valores fundamentais são mantidos por longos períodos. Foi o que ocorreu na Europa, a partir do processo de modernização social e política, que teve na reforma protestante e na revolução gloriosa seus marcos fundamentais. Estes dois processos, o primeiro de âmbito religioso, o segundo de âmbito político, produziram profundas mudanças nos valores, sacudindo os alicerces da eticidade tradicional, ao afirmar duplamente a liberdade humana: em sua dimensão subjetiva (contra a religião) e em sua dimensão objetiva (contra o estado). A afirmação da liberdade individual contra os poderes constituídos (e os valores que os sustentavam) teve um impacto profundo sobre os pensadores iluministas e românticos. Se, para Immanuel Kant, representando os primeiros, o homem passava a ser o único legislador no mundo ético, expressando sua autonomia moral por meio de imperativos categóricos (segundo os quais o ato moral somente é válido se for guiado por regras universais aplicáveis a todos os seres racionais, sem exceção); para Hegel, representando os segundos, a teleologia histórica, afirmava a liberdade individual como um valor absoluto: “A história universal não é senão a história do progresso da liberdade”. Como se vê, para além dos valores clássicos, herdados da civilização greco-romana e cristã, novos valores foram criados nesse período. Individualismo, tolerância e pluralismo, dentre outros, foram incorporados ao éthos europeu, e, por difusão cultural, influenciaram o restante da civilização ocidental. Herdeiros da contra-reforma, que nos colocou na contramão da Modernidade, nós, latinos, também recebemos, pela via da colonização portuguesa e da religião católica, os valores clássicos da civilização greco-romana e cristã. Por séculos esses valores guiaram a moralidade pública e privada em nosso continente. No caso do Brasil, foi necessário o rompimento com as bases rurais de nossa economia e de nossa vida social, para que os valores inscritos na modernidade ocupassem seu espaço na modelagem das condutas. Como bem notou Émile Durkheim, na medida em que se modificam os fundamentos da solidariedade social, viz. quando uma sociedade agrotradicional modifica suas relações de produção (tornando-as cada vez mais urbano-industriais), ocorre uma modificação na hierarquia dos seus valores. A diferenciação social, resultante do incremento da divisão do trabalho, leva ao rompimento com os laços comunitários, estimulando o surgimento do individualismo. Foi o que ocorreu no Brasil a partir da segunda metade do século passado. O rápido crescimento demográfico, somado às migrações internas e à urbanização acelerada, resultou em um processo de secularização dos valores sociais, retirando da igreja católica seu papel histórico de reitora nesse campo. Deve-se ressaltar também, nesse processo, o surgimento de novas ideologias políticas, expressão da consolidação de novas classes sociais, caudatárias da modernização socioeconômica. Essas ideologias políticas, por sua vez, passaram a interpretar e hierarquizar os valores a partir de seus objetivos estratégicos (que convergem para a tomada do poder do Estado). Após este breve retrospecto teórico-histórico, pode-se afirmar, em síntese, que a crise de valores, que ora atravessamos, possui um duplo conteúdo: a) estrutural: ligado à modernização socioeconômica sobrevinda ao país nos últimos 50 anos, com seu impacto no universo do éthos tradicional, como vimos acima; b) político: ligado às ideologias que disputam o poder político em nossa sociedade, alicerçadas em valores distintos e conflitantes (que estabelecem os limites do espaço ideológico/político), como no caso do individualismo liberal versus o igualitarismo socializante. Com relação aos valores típicos da modernidade, que enfatizam o individualismo, gostemos ou não, nada podemos fazer; eles vieram para ficar. Mas, com relação aos valores que guiam a moralidade pública, necessitamos, mais do que nunca, reafirmá-los. É imperioso, na atual conjuntura, que os agrupamentos políticos de todos os matizes ideológicos assumam a defesa dos valores fundamentais da República. A relativização da lei, cuja expressão é o laxismo, leva ao descrédito na eficácia do sistema jurídico. O desrespeito à autoridade leva à anarquia. A desvalorização do mérito leva à proliferação da incompetência. A corrupção política leva à descrença na Democracia. Platão, na República, sustentava a tese de que cada regime político possuía um vício principal, que causava, cedo ou tarde, a sua inevitável substituição. Na Democracia, é a ausência de limites para a liberdade que leva à ruína do regime. Diz Platão: “É natural, portanto, que a tirania não se estabeleça a partir de nenhuma outra forma de governo que não seja a democracia, e julgo eu, que do cúmulo da liberdade é que surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas”. A disputa pelo poder, no mercado político, deve ser cerceada por limites éticos claramente estabelecidos. O silêncio da lei não deve ser interpretado como estímulo à permissividade. São os valores, interpretados de modo prudencial, que devem servir de guia para as condutas quando a lei é omissa. Para evitar o agravamento do atual estado de anomia, é preciso advogar – de modo intransigente – pela defesa daqueles valores considerados fundamentais para guiar a vida coletiva. A igualdade de todos perante a lei, a probidade da administração pública e a supremacia dos interesses gerais sobre os interesses particulares são os alicerces em que está assentada a República. Aristóteles, na Política, já advertia que um dos modos mais eficientes de corromper a Democracia consiste em evitar que a Lei seja soberana. John Locke, pai do Liberalismo Político, em seu Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, faz da isonomia o compromisso mais importante do Poder Legislativo. Nesta obra, diz Locke: “Primeiro [o poder legislativo], tem de governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, que não poderão variar em casos particulares, instituindo a mesma regra para ricos e pobres, para favoritos na corte ou camponeses no arado”. Os grandes pensadores gregos não cessavam de lembrar que o legislador é o mais importante dos pedagogos, pois é pelas boas leis que se produzem bons cidadãos. E, diríamos nós em adendo, que cabe aos magistrados transmitir aos casos particulares, por meio de sentenças justas, a sabedoria dos legisladores. Aristóteles, na Ética a Nicômaco legou à posteridade esta frase memorável: “E também parece que o homem verdadeiramente político é aquele que estudou a virtude [excelência na conduta individual, tanto na vida privada, quanto na vida pública] acima de todas as coisas, visto que ele deseja tornar os cidadãos bons [virtuosos] e obedientes às leis”. Sem a virtude, que se expressa na vida política pela adesão firme aos valores da justiça, liberdade, igualdade, mérito, tolerância e pluralismo, as relações sociais ficam imersas numa escura noite moral, na qual, segundo o dito popular, todos os gatos são pardos. Na ausência de critérios objetivos para a conduta, o seu único referencial passa a ser a busca da vantagem pessoal, tal como prescreve, pragmaticamente, a “Lei de Gerson”. Sem a afirmação e a defesa de nossos valores fundamentais, nossa crise de valores irá perdurar por longo tempo, com seus reflexos anômicos na moralidade pública e privada.
A vida e seus “super-valores”
Geraldo Felício da Trindade – trindadefilosofia@yahoo.com
O mundo é antigo, mas grande parte do que se vive hoje brotou do passado.No caso do Brasil, uma cultura colonial, escravocrata, marcada pela exploração da natureza e por práticas corruptas. De certa forma, sempre houve uma cultura de manipulação e desrespeito. Qual seria o traço marcante cotidiano brasileiro: crianças sendo mortas, corrupção, balas perdidas, pessoas mendigando, milhões de sonegação… Viver está esquisito? Muitos estão se portando acima do bem e do mal como se fossem donos do mundo.
Dinheiro, poder, beleza, nada disso desabsolutiza a finitude da vida. A ciência nunca vai inventar um elixir que ressuscite o corpo morto. A busca desenfreada pelo dinheiro se revela em atitudes corruptas, antitéticas e de esperteza. Estabelecem-se paralelos entre eu e o outro, em uma crise comparativa do valor pecuniário e posição social. Desejar o que é do outro tornou-se mania, que destila veneno na alma.
A dita inveja, de tão cruel e perigosa aplaude as injustiças em detrimento da justiça, de valorização daqueles que, mesmo com caráter duvidoso chegam aos altos postos.
A pactuação com o jogo sujo, de certa forma vai matando a esperança dos brasileiros. Vive-se à espera de um futuro em meio à deslealdade e valores supérfluos. Faz tempo que os meios de comunicação imitam a realidade, invadem as casas e impõem condutas, pensamentos e valores nem sempre éticos modificando os mais puros desejos e sentimentos. Cada vez mais, a sociedade vai se tornando apaixonada pelo virtual, banal e frívolo.
Aqueles que pautam suas vidas pela virtualidade dos meios de comunicação, não assimilaram que desapontamentos e sofrimentos fazem parte de suas vidas. Imitam de tal forma a ficção, que estão em constante atitude de revanche e vingança quando se sentem desfavorecidos e ameaçados. Cultua-se o rancor entre os adultos e as crianças. A autodefesa é conceito de valor repassado às crianças, confundindo agressividade com instinto de auto-preservação.
Muitos sonham com o amor, com a amizade, com a família e com o afeto, mas o moderníssimo mundo é frio, congelante e distante. Nada é mais cruel do que a convivência desleal e marcada pela desconfiança. Como é bom relaxar e desarmar o coração.Amar aqueles que merecem o amor; amar sem esperar recompensas. Tal atitude perdeu sua presença ativa porque a tendência é relativizar as relações e absolutizar a compra e a venda. Quer-se projetar nas relações o que ocorre na lei de mercado.
As relações intersubjetivas exigem, fundamentalmente, autenticidade. Nesse processo, as manipulações e falsidades não têm lugar.A relação sadia é elixir para alcançar a alegria verdadeira. Além dessa relação distorcida entre os homens, esses acabaram por correr desenfreadamente na busca de um adjetivo, que se transformou de individual para geral. Todos padecem das mesmas escolhas.
Os pais já não têm tempo de educar seus filhos e cobiçam os bens de seus vizinhos e conhecidos. Esquecem-se de que quanto mais pautam suas vidas pelo consumo mais se tornam inseguros. Acreditam ser mais felizes não com o que têm, mas sonham com o que é do outro. Olvidam que o sentido da vida está onde menos se espera. Conquistar, usufruir, tornam-se verbos usados diariamente, gramaticalmente corretos ou não.
Vive-se a era do útil, do apolítico, do apático, do neutro. Nessa rotina do “tô nem aí” ou “pouco importa”, o amor nasce velho, pois o “ficar” e o “pegar” o tornou retrógrado. A amizade verdadeira é desacreditada e a ternura tornou-se banal. É preciso que se busque o belo na vida, resgatá-o, por exemplo, na sabedoria, na música, na arte, na literatura; ou seja, como expressão essencial da vida. Basicamente é repensar a vida e procurar vê-la sob um novo olhar.
muito bom