É um profundo contrassenso chamar de democráticas as tentativas de mudança das instituições políticas pelos líderes que representam atualmente os ideais autoritários da velha esquerda latino-americana – Chávez na Venezuela, Morales na Bolívia e Correa no Equador.
Afinal, não podemos nos esquecer de que, há exatos 20 anos, o mundo passou por uma verdadeira revolução social que varreu os regimes socialistas do planeta. Tal revolução demonstrou o caráter totalitário – repressivo e violento – do regime instalado em todos os países que adotaram a foice e o martelo como símbolos, o socialismo como modelo político-econômico de desenvolvimento e as bandeiras vermelhas como elementos de expressão e mobilização da identidade e soberania nacionais. Hoje restam apenas Cuba (parcialmente) e Coreia do Norte como exemplos do anacronismo dos ideais que durante quase todo o século 20 moveram corações em quase todo o mundo.
Mesmo em países como Brasil, Argentina e Peru, onde jamais se instalou um governo de cunho socialista – isto é, que tenha assumido um discurso contrário à propriedade privada e às liberdades políticas e econômicas -, as restrições às liberdades individuais foram significativas. Nesses países, o chamado nacional-desenvolvimentismo foi capaz de unir forças políticas, agrupando desde socialistas da esquerda até militares de direita em torno da ideia de estabelecimento de um Estado forte o suficiente para dirigir a economia nacional rumo à autossuficiência econômica, confundida com independência e soberania nacional.
A lição que parece não ter sido apreendida pelos líderes dos partidos latino-americanos de esquerda é que a população exige melhores condições de vida como condição básica para legitimar os regimes políticos. É certo que em alguns países a esquerda aprendeu com os erros do passado: no Chile, na Costa Rica, no Uruguai e, aparentemente, no Peru ocorreu uma profunda mudança na mentalidade dos dirigentes e da militância de esquerda, favorecendo o dinamismo econômico e a liberdade política. No Brasil, o pragmatismo na condução do governo pelos que estão na cúpula do maior partido de esquerda, o PT, provocou uma quase completa desideologização do debate político-partidário. Em todos esses países os governantes de esquerda entenderam que crescimento econômico com baixa inflação e sem crises cambiais requer a expansão e a preservação das liberdades políticas e econômicas de todos os cidadãos, ou seja, requer mais capitalismo e mais democracia. E esse processo de expansão das liberdades individuais se dá, necessariamente, pela limitação dos poderes dos governantes e das intervenções do Estado que eles manejam.
Mas por que capitalismo e democracia são requisitos ao crescimento com baixa inflação e equilíbrio nas contas externas?
Capitalismo e democracia representativa protegem os cidadãos da sanha de todos os grupos capazes de influenciar as decisões dos governantes para obter renda, politicamente. Aristocratas, latifundiários, industriais, sindicalistas, lideranças sociais, regionais ou étnicas ou políticos profissionais defendem interesses de grupos específicos à custa de cada cidadão que trabalha e paga impostos. Para transferir renda para suas clientelas, os líderes de grupos organizados precisam taxar mais os contribuintes, prejudicando seu bem-estar. Por isso, o cidadão comum se sente estimulado a trabalhar mais e melhor, para acumular riqueza e, assim, investir e consumir mais no futuro, apenas quando resguardado do que podem lhe fazer de mal os que tomam as decisões políticas em nome de um suposto “interesse comum”.
Liberto dessa armadilha, o cidadão aciona as engrenagens de geração de riqueza pelo trabalho árduo e pela inovação, o cerne do crescimento da produtividade e do produto da economia. Com o passar do tempo, mais indivíduos tendem a aderir a sistemas produtivos eficientes, beneficiando indiretamente os que compram seus produtos (afinal, maior produtividade permite a queda dos preços). Crescem a oferta de bens e serviços assim como a oferta de emprego. A inflação tende a cair, o câmbio real se deprecia e as exportações sobem.
Mas por que lideranças e militantes de esquerda de alguns países aprenderam essa lição, enquanto outros permaneceram fiéis aos ideais totalitários, mesmo após a derrocada do comunismo? Arrisco-me a dizer que, em grande medida, esse amadurecimento da esquerda dependeu de fatores históricos não facilmente replicáveis: o papel desempenhado pelos líderes políticos de centro antes de a esquerda chegar ao poder. Mais especificamente, onde o centro se mostrou capaz de estabelecer um projeto capitalista e democrático robusto – como ocorreu no Chile, na Costa Rica, no Peru e no Brasil -, as lideranças de esquerda precisaram revisar seus ideais, discursos e práticas já tão desgastadas pela revolução anticomunista europeia dos anos 80. Onde, porém, os governos anteriores representavam apenas uma alternativa conservadora e elitista de pilhagem de recursos públicos também à custa das liberdades do cidadão comum, por conta de um sistema político pouco representativo, as lideranças de esquerda não precisaram rever seus dogmas. Chegaram ao poder simplesmente pela capacidade de mobilizar a insatisfação popular em relação ao governo das oligarquias. No poder, recorreram a esses dogmas e declararam a nova novidade: um socialismo do século 21!
Mas não nos enganemos: o socialismo do século 21 nada mais é que o socialismo do século passado, repressivo e violento. Ele reprime os instintos humanos para o trabalho, a inovação, a geração de riqueza e a troca, assim promovendo baixo crescimento, alta inflação, crise cambial, desabastecimento, queda do investimento privado, desemprego e instabilidade social.
(O Estado de SP – 13/10/2009)
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