O sucesso de um livro pode ter muitas causas, mas geralmente é preciso que ele trate de um tema de interesse dos leitores e cause grandes controvérsias. Essa parece ter sido a fórmula mágica que tornou o livro “O Capital no século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, em um dos mais vendidos no mundo, em 2014. Ele aborda uma questão que vem preocupando a maioria dos países desenvolvidos, e até mesmo alguns emergentes, nas últimas décadas: o aumento da concentração de renda e da riqueza. Mais do que tratar do tema, ele dá uma explicação para esse fenômeno e um remédio para amenizá-lo, em uma linguagem acessível ao grande público.
[su_quote]Se a coleta e a análise das informações é o ponto alto da pesquisa do economista francês, a sua solução para mitigar a concentração da riqueza no século atual é bastante questionável[/su_quote]
O livro faz três importantes contribuições em suas 672 páginas, na sua versão em português. A primeira se refere à exaustiva coleta de informações sobre a evolução da desigualdade de renda e riqueza nos principais países desenvolvidos do mundo, desde o final do século XVIII até o início do século XXI. A segunda é a sua tentativa de atribuir ao capitalismo uma tendência natural à concentração da riqueza, devido à taxa de retorno do capital ser sistematicamente maior do que o crescimento das economias. A terceira, e ainda mais controversa do que a segunda, é a solução que ele aponta para reverter essa situação: taxar progressivamente a riqueza, penalizando com uma taxa anual de até 10% as grandes fortunas.
A pesquisa de dados para a elaboração do livro é impressionante, englobando para alguns países quase trezentos anos. A partir dessas informações, é possível perceber que a queda da desigualdade de renda e da riqueza, ocorrida entre 1914 e o início dos anos 1970, foi uma exceção à regra. As duas guerras mundiais, a grande depressão econômica dos anos 1930, a elevação de impostos que ocorreu no mundo desenvolvido nesse período e a disseminação do estado de bem-estar social contribuíram para reduzir a remuneração do capital – definido por tudo aquilo que tem valor de mercado e pode ser comercializado, tais como imóveis, ações e aplicações financeiras.
Ao mesmo tempo em que o retorno do capital declinou durante boa parte do século passado, o rápido aumento da produtividade e da população mundial elevou o crescimento global. Assim, nesse período de exceção, houve uma melhoria da distribuição de renda e da riqueza global. Sem a presença desses fatores incomuns e transitórios, de acordo com Piketty, a tendência é que ocorra um processo de concentração da riqueza, com a remuneração do capital superando o crescimento da economia. Isso teria ocorrido desde o final do século XVIII até o início da 1ª Guerra Mundial e voltado a acontecer, mais recentemente, a partir dos anos 1970, e seria uma tendência natural do capitalismo.
Desigualdade voltou a aumentar
Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a partir do início do século XIX, há um processo de elevação do grau de concentração da riqueza. Em 1810, os 10% de norteamericanos mais ricos detinham uma parcela de 58% da riqueza total, passando para 81,1%, em 1910. Enquanto isso na Europa, os mais afortunados aumentaram a sua participação no bolo da riqueza de 82,2% para 89,5%, no mesmo período. Entre 1910 e os anos 1970, há uma reversão desse quadro, com uma desconcentração da riqueza em ambas as regiões, embora mais intensa na Europa. Mas, a partir dos anos 1970 nos Estados Unidos e dos anos 1980 na Europa, novamente os 10% mais ricos passaram a possuir uma fatia crescente da riqueza, ainda que bastante abaixo daquela que possuíam no início do século passado, chegando, em 2010, a 63,9% na Europa e 71,5% nos Estados Unidos.
Alguns economistas questionam se realmente Piketty tem razão em afirmar que o futuro irá repetir o passado. As críticas assumem duas vertentes principais. Uma aponta que é mais difícil obter um retorno maior sobre o capital quanto mais abundante ele é. Além disso, atualmente a maioria dos mega-ricos obtém a sua riqueza por meio do trabalho e não de herança, como nos séculos XVIII e XIX, dando um caráter mais meritocrático ao processo de enriquecimento. Outra vertente estranha a sua obsessão com a acumulação de capital e o seu quase esquecimento da necessidade de estimular o crescimento econômico, como forma de reduzir o grau de concentração de renda e riqueza.
Solução controversa
A hipótese de Piketty sobre a tendência inerente ao capitalismo de concentrar renda, assumindo que a remuneração do capital manterá a sua expansão acima do crescimento da economia no século XXI, o levou a sua terceira contribuição, bastante controversa. Ele sugere uma taxa global progressiva sobre o capital, que poderia partir de 0,1% e atingir o máximo de 10% sobre fortunas acima de 1 bilhão de euros. Essa taxa, segundo o autor, criaria um incentivo para os donos do capital buscarem o maior retorno possível sobre o seu estoque de recursos, além de ser um melhor indicador da capacidade contributiva dos muito ricos do que a renda, que geralmente é subestimada, devido à omissão de rendimentos.
Se a coleta e a análise das informações é o ponto alto da pesquisa do economista francês, a sua solução para mitigar a concentração da riqueza no século atual é bastante questionável. Alguns chegam a afirmar que as suas recomendações são viesadas ideologicamente, mostrando claramente um típico esquerdismo francês. Mas a maior parte dos críticos refuta suas sugestões com argumentos econômicos. Muitos afirmam que, além de pouco exequível do ponto de vista prático, uma taxação sobre a riqueza, ao invés de estimular uma busca por maiores retornos sobre o capital, conforme Piketty apontou, acabaria desincentivando o empreendedorismo e a busca pelo risco e a inovação. Por que Bill Gates iria permanentemente aperfeiçoar seus softwares se uma parcela de sua riqueza fosse anualmente retirada?
O autor também ignora outras formas de tornar mais acessível a propriedade do capital, tal como estímulos a uma ampliação tanto no processo de participação nos lucros das empresas como no controle acionário por parte dos trabalhadores. Mas mesmo os críticos mais ácidos às suas propostas para remediar o crescimento da iniquidade da riqueza nas últimas décadas, concordam com a importância do livro em termos coleta de dados e na sua análise sobre esse processo. Embora ele provavelmente não tenha sucesso em convencer os países a adotar uma taxa global sobre a riqueza, o seu livro serviu para aquecer o debate sobre um tema que tem preocupado boa parte do mundo no século XXI.
Fonte: Correio do Povo, 18/01/2015.
No Comment! Be the first one.