A economia mundial entrou no quarto trimestre do ano muito melhor do que se poderia supor no fim do primeiro. A maioria dos países cresce outra vez, as bolsas recuperaram grande parte das perdas, a solvência do sistema financeiro não está mais em questão e a maioria das empresas se financia a custos bem mais baixos do que há seis meses. A maior parte dos analistas prevê para o próximo ano uma maior expansão, mas com inflação baixa, o que permitirá que os juros básicos permaneçam baixos por bastante tempo. A história mostra que esse é um cenário favorável aos mercados acionários, e aos ativos de risco em geral, o que ajuda a explicar a recuperação das bolsas e das commodities nos últimos meses.
Muitos investidores acreditam, porém, em cenários mais extremos e, o que é mais interessante, se dividem em apostas diametralmente opostas. Vários deles ainda creem no cenário deflacionista que se temia no início do ano, enquanto que na outra ponta têm-se aqueles que acreditam numa forte aceleração inflacionária. Como observa relatório recente do Deutsche Bank, essa dissonância aparece em pesquisa do Banco Central Europeu com economistas de mercado, que registra altas significativas tanto na proporção daqueles que projetam inflação abaixo de 1,5% como na dos que a preveem taxa acima de 2,5%. Outro indicador é a coincidência de recordes sucessivos no preço do ouro, em geral uma proteção contra alta da inflação, e títulos públicos com retornos nominais em patamares historicamente baixos, especialmente dada a grande oferta de novos papéis, o que tende a ocorrer quando se espera queda de preços.
O “Relatório de Estabilidade Financeira Global” do FMI e artigo sobre a economia mundial publicado na “The Economist” da semana passada implicitamente endossam a tese deflacionista e explicitam sua lógica. A ideia básica é que algumas das maiores economias do mundo, especialmente EUA e Reino Unido, sofrem uma “recessão patrimonial”, um processo mais complicado que uma contração tradicional, que é uma “recessão de fluxos”, às vezes provocada pelo próprio governo para conter a inflação. Numa recessão patrimonial, como a ocorrida no Japão dos anos 1990, os agentes econômicos precisam reestruturar seus ativos e passivos para adequá-los ao estouro de uma bolha.
Isso significa que as famílias americanas, que aumentavam o consumo mais que a renda, via dívidas crescentes, agora terão de expandir o consumo menos que renda, para pagar débitos e recompor seu patrimônio, dilapidado pela queda do preço das casas e ações. Além disso, o crescimento abaixo do potencial manterá o desemprego em alta mesmo com a economia em expansão, complicando ainda mais a situação das famílias. Os bancos, por seu turno, terão de reduzir sua alavancagem (ativos sobre capital próprio), o que implica restringir o crédito. Essa não é uma necessidade apenas nos EUA, mas também, e ainda em maior grau, na Europa. Entre outras coisas, isso elevará o custo do capital e desestimulará o investimento, o que a médio prazo reduzirá o risco de deflação, mas no curto prazo terá o efeito oposto.
Isso significa que países que vinham consumindo mais do produzindo terão de fazer o oposto durante os próximos anos. Acontece que os países que produziam muito e consumiam pouco não estão se adaptando de modo a equilibrar as coisas. Mesmo na China, este ano o investimento deve outra vez superar o consumo como fonte de demanda, o que significará no futuro maior capacidade de produção. Muita oferta e pouca demanda jogariam os preços para baixo, uma vez esgotados os efeitos transitórios da recomposição de estoques e dos pacotes fiscais.
O Fundo propõe que, para evitar esse cenário, se deve: manter as políticas fiscal e monetária expansionistas, insistir com a China para valorizar sua moeda, e transformar o FMI num banco central global, de forma que os países que acumulam reservas como um seguro anti-crise deixem de fazê-lo, já que poderão recorrer ao Fundo se necessário. Estas duas últimas são medidas de difícil implementação. Se a China mexer significativamente no câmbio, penalizará seu setor exportador, que é grande empregador e regionalmente concentrado, elevando o risco político interno. Os países pobres não confiarão no socorro incondicional do Fundo enquanto este for controlado pelos países ricos, e estes não aceitarão abrir mão do controle, entre outras coisas, por receio de que esse apoio incondicional estimule a adoção de políticas macroeconômicas irresponsáveis.
Resta, portanto, a manutenção dos estímulos fiscais e monetários. É exatamente por saber que os governos não se arriscarão a reverter essas políticas muito cedo, como fez o Japão no passado, que se aposta que elas serão mantidas por tempo demais. Isso levaria a um enorme aumento do endividamento público, tanto para financiar gastos como para absorver parte do endividamento privado e reduzir a alavancagem de famílias e bancos. O Brasil passou por experiência semelhante no início dos anos 1980. O resultado foi a crise fiscal e a forte aceleração inflacionária na década e meia seguinte.
Esses são cenários para os países com recessões patrimoniais ou que dependem desses países para alocar parte significativa da sua produção. Grande número de países, incluindo o Brasil, não está nessa situação. Também para estes, porém, a manutenção da trajetória atual de recuperação com inflação e juros baixos é a melhor alternativa. Para o Brasil, em especial, que sai da crise com melhor imagem do que entrou, esse cenário significa acesso a financiamento externo a custos relativamente baixos e retomada da demanda por suas exportações. Porém, como colocado no relatório do Fundo e no último comunicado do G- 20, é fundamental evitar a complacência, já que os cenários descritos acima também teriam consequências ruins para o país. Evitar a complacência significa retomar o processo de reformas e tornar a política fiscal e o crédito público efetivamente anticíclicos; ou seja, no quadro de expansão atual, utilizá-los para conter, e não acelerar o crescimento da demanda doméstica.
(Valor Econômico – 09/10/2009)
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