Quando criança, fiquei vivamente impressionado com uma história na qual o Diabo comprava a alma de um estudante pobre. Tanto que cheguei a sonhar com o Demo que vinha em busca de minha alma, o que não era muito; mas trazendo a possibilidade de realização dos meus desejos mais secretos – o que era apavorante.
Dessa história marquei um detalhe. A formalização da venda da alma por meio de um contrato assinado com sangue. Sangue que o Diabo obteve cortando seu pulso e o de sua vítima sócio e que serviu como veículo para as assinaturas com as quais selaram o torpe negócio. Se os empréstimos tivessem sido assinados com sangue, não teríamos crise, diz a voz desse menino que vive em mim…
Mas seria mesmo possível escrever com sangue? Teria o sangue uma permanência perpétua, superando a tinta negra das canetas-tinteiro, que andavam no “bolso de dentro” dos paletós dos adultos, custavam caro e eram símbolos de masculinidade, educação e autonomia?
Meus irmãos, nossos amigos e eu resolvemos tirar a coisa a limpo. Depois de alguma discussão, na qual excluímos coelhos, pombos, cavalos (por medo de coice) e bovinos (por não estarem à mão), centramos-nos no sangue de galinha, gato e cachorro. Como éramos cinco irmãos, sangue humano era o que não faltava. A abundância de corajosos voluntários permitiu que, em alguns minutos e alguma dor, orvalhássemos uma tampa de lata de pastilha Valda. Mas nossa curiosidade científico-teológica exigia mais. Daí o teste com o sangue da galinha, conseguido facilmente num domingo, quando Dedê, nossa cozinheira, preparou galinha ao molho pardo e houve aquela matança ritual da ave, com o corre-corre para pegá-la e submetê-la ao sacrifício familiar que passava primeiramente pelo degolamento parcial do animal em cima de um prato fundo que, como um altar, recolhia o sangue a ser transformado naquele molho negro e grosso, delicioso, que comíamos. Muito mais complicado foi obter o sangue do gato e do cachorro. Não só pela dificuldade da coleta, mas pelo ato um tanto sinistro de submeter dois animais com os quais tínhamos um elo de estimação e eles, a personalidade correspondente a tal estima (ambos tinham nome, lugar na casa, coleira e tudo), o que tornava a coleta um gesto espremido entre o “científico” e a mais pura maldade. O fato, contudo, é que a fria curiosidade venceu a ternura por Bichano e Totó que, mansos, forneceram sangue suficiente para que uma imaculada folha de papel almaço recebesse nossas assinaturas. Cada um de nós assinou, usando o sangue do bicho preferido, com letra rebuscada, marca pessoal teoricamente indelével ao tempo. O papel foi guardado, mas logo esquecido. Outros projetos – fazer um barco com a madeira na qual veio embalado o piano de mamãe e de testar uma bicicleta movida a vela – substituíram essa gloriosa experiência de escrever com sangue.
Foi somente outro dia, quando comprei um tinteiro, que me voltou à memória esse projeto. Foram-se as assinaturas com sangue, mas ficou a consciência de várias escritas. Das palavras grafadas no conhecido, infantil e trivial lápis que permite corrigir e, principalmente, apagar os erros com uma borracha, à muito mais séria e ritualizada escrita à tinta, até a forma suprema da escrita com sangue – sangue que representava a própria vida e que era o material nobre com o qual se assinavam contratos eternos. Pena que não me lembrei de assinar com sangue as muitas promessas que recebi pela vida afora. Dos amores intermináveis aos favores inesquecíveis.
Hoje, vivemos o momento das redes e, com elas, dos tombos e quedas. Temos muitos textos e nenhuma escrita. Difícil pensar na letra da lei quando escrevemos em telas e muito pouco em papel. E mesmo quando usamos papel e o assinamos ritualmente – ao tomar posse de algum cargo público ou ao proclamar princípios -, podemos nos retratar, nas famosas declarações autocomplacentes que desfazem hoje o que fomos no passado.
Para o menino iniciado num mundo em que era possível vender a alma ao Diabo, pactuando com ele uma assinatura feita com sangue; para quem conheceu a expressão “palavra de honra” ser usada com veemência em algumas ocasiões; para quem temia escrever à tinta porque as palavras assim lavradas não podiam ser apagadas e borravam o texto, essas memórias têm um toque de assombrosa irrealidade e de prodigiosa nostalgia.
Para que relembrar essas escritas eternas se o Diabo não mete mais medo porque vive entre nós? Está no computador que nos vigia e comanda, nas balas perdidas, nos assaltos, na insinceridade galopante dos que nos governam, e nas armas dos traficantes que dominam nossas cidades? Realmente, o tempo da escrita à tinta passou, mas ainda continuamos a fazer promessas e a contrair dívidas. Com que material esses contratos são firmados? Com os ventos da demagogia, com a escrita ideológica que condescende com os “nossos” sendo implacável com “eles”, cujo fim é o dinheiro, o sucesso e o poder a qualquer custo?
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