Ensina-nos a literatura especializada que a característica mais marcante do distúrbio esquizotípico é a dissociação e a assintonia das funções psíquicas, disto decorrendo fragmentação da personalidade e perda de contato com a realidade. Não é por outra razão que o convívio com pessoas acometidas por este mal é por vezes uma experiência difícil, principalmente porque a multiplicidade de personalidades intercambiantes a cada momento deixa o interlocutor absolutamente inseguro, sem saber exatamente o que esperar da pessoa com a qual está se relacionando.
Infelizmente o que parecia ser uma questão reservada apenas aos domínios da psiquiatria ou da psicologia vem se alastrando também para o ramo das relações entre estado e indivíduo. O fenômeno é, ainda, acentuado pelo movimento relativamente recente, conquanto tardio em nosso país, de multiplicação de órgãos públicos e agências reguladoras, todos dotados de poder regulamentar (expedir normas), fiscalizador (velar pela sua observância) e punitivo (aplicar sanções em razão de seu incumprimento).
Não é raro, portanto, que empresas e indivíduos vejam-se diante de situações concretas nas quais um mesmo fato enseja a abertura simultânea de diversos processos perante diferentes órgãos, todos eles se julgando competentes para instaurar processos e, eventualmente, aplicar as penas cabíveis.
Para que ninguém pense que o que aqui se afirma é impossível de acontecer na prática, passemos a descrição de uma hipótese concreta para melhor ilustrar o raciocínio. Imagine-se, por exemplo, que determinada empresa do ramo de telecomunicação (sujeita ao poder de polícia da ANATEL), efetua práticas supostamente ilícitas com o fim de reduzir o ICMS incidente em suas faturas de serviços (atribuição da Secretaria Estadual de Fazenda), obtendo com essa prática condições de preço mais favoráveis e, portanto, causando desequilíbrio na concorrência (atribuição do CADE e Secretaria de Defesa Econômica).
Imagine-se, ainda, que o comportamento dessa empresa possa ser, ao menos em tese, enquadrado na moldura típica dos crimes contra a ordem econômica e tributária, ensejando a abertura de outro processo administrativo (inquérito policial), que culmina em uma denúncia aceita pelo juiz competente, dando início a mais um processo, desta vez de ordem criminal.
Sem querer entrar na discussão acerca da legitimidade da existência simultânea de tantos processos versando apenas sobre um único fato, o que demandaria uma longuíssima digressão sobre o princípio do non bis in idem, incorporado ao direito do mundo ocidental desde a Roma antiga, simplifiquemos o raciocínio e imaginemos apenas que o processo aberto junto à Secretaria Estadual de Fazenda venha a ser julgado em caráter definitivo antes dos demais, ficando decidido que a nossa empresa hipotética não cometeu qualquer irregularidade e que não sonegou ou suprimiu um centavo sequer de ICMS.
Pergunta-se, poderiam os demais “órgãos estatais”, assim designados para simplificar o raciocínio, prosseguir com seus processos em suas áreas específicas de competência? Dito de outra forma, poderiam o CADE e a ANATEL entender que a empresa causou desequilíbrio no mercado, quando este desequilíbrio era uma simples conseqüência da suposta sonegação de ICMS, que foi negada pelo órgão competente? E as conseqüências criminais desse fato, como ficam? Seria justo ou eficiente prosseguir com todo o doloroso trâmite na esfera criminal e nas demais esferas administrativas dotadas de poder punitivo quando o fato que deu origem a todo esse emaranhado processual já foi negado pela autoridade competente? A resposta negativa se impõe.
Não é preciso ir muito longe nem fazer aqui grandes digressões doutrinárias para demonstrar algo que é, evidentemente, absurdo, simplesmente porque afronta o bom-senso e a lógica. Infelizmente, entretanto, o caso hipotético que ora se descreveu é comum – comuníssimo até – sendo cada vez mais rotineiro ver cidadãos e empresas submetidos a múltiplos processos em diversas esferas ou instâncias, cada uma delas entendendo possuir legitimidade não apenas para processar e julgar os fatos submetidos à sua análise, mas também para chegar a conclusões diametralmente opostas e logicamente antagônicas e desarmônicas entre si.
Já tive a oportunidade de escrever no passado sobre esta questão sob o prisma jurídico, analisando as inter-relações entre as diferentes “instâncias” e as conseqüências que determinado julgamento dando pela negativa ou pela existência do fato produz em cada uma delas.
Como advogado que sou, escrevi sobre segurança jurídica, unicidade do poder repressivo estatal, estabilidade e imutabilidade das decisões administrativas definitivas e defendi a necessidade de coordenação, harmonia e, sobretudo, respeito entre os diferentes órgãos estatais, notadamente em virtude do caráter unitário do estado brasileiro, que seguiu em linhas gerais o modelo presidencialista americano, concentrando no chefe do poder executivo toda fonte de poder para, depois, delegá-lo a outros órgãos administrativos na busca de uma maior eficiência1 .
Não é este, no entanto, meu objetivo neste curto artigo. Pretendo, apenas, realçar o último aspecto ao qual acabo me referir – a eficiência – porque foi em nome dela que o estado se modernizou e se descentralizou. Foi em busca de uma maior eficiência, desculpem-me pela repetição, que tantos órgãos estatais e agências reguladoras especializadas nesta ou naquela matéria foram concebidos e criados. Foi em nome da eficiência, enfim, que se concebeu o modelo de estado moderno e descentralizado no qual o chefe do poder executivo pode se permitir viajar boa parte do tempo, sem que isto ocasione a paralisia das funções estatais.
Carregamos, ainda nos dias de hoje, resquícios da pesada tradição lusitana e monarquista que enxerga o estado como fonte de poder superior aos súditos, que dele dependem e que lhe devem obediência, quando não gratidão. Pensamos no estado com “poderes” executivo, legislativo e judiciário, com todo o peso da carga semântica que a palavra “poder” inexoravelmente carrega. Somos aparentemente incapazes, no entanto, de pensar em um estado no qual a palavra poder seja substituída pelo termo “serviço”, invertendo a lógica de submissão hoje existente e tornando todos os cidadãos autênticos credores das promessas de campanha e “clientes” do estado que por eles é sustentado.
No momento em que passarmos a enxergar o poder judiciário, aqui tomado a título de exemplo inicial, como um “serviço judiciário”, pelo qual pagamos com nossos impostos e pesadas taxas e que tem a obrigação de solucionar os conflitos que lhes são submetidos de forma eficiente, célere e justa, começaremos a inverter o quadro de paralisia hoje existente. Quando pudermos pensar no poder legislativo, como um “serviço legislativo”, que tem a obrigação de produzir leis objetivas e úteis às necessidades do país, certamente teremos dado um passo na melhoria da qualidade de nosso parlamento. Quando pudermos, enfim, pensar no poder executivo seguindo mesma lógica de serviço público, talvez seja possível eliminar uma série de problemas hoje existentes.
Pois, bem, retornando ao nosso tema central, creio haver demonstrado através da hipótese concreta posta no início deste artigo que vivemos em um estado enfermo, multifacetado, instável e volúvel, incapaz de fornecer um mínimo de paz, segurança e de estabilidade nas suas relações com os indivíduos. Evidente, ainda, que essa esquizofrenia estatal é causada pela atuação desordenada de múltiplos órgãos criados com o objetivo de descentralizar as atividades estatais, mas cuja atuação desarmônica termina por corroer a confiança no sistema.
Além disso, a coexistência de diversos órgãos estatais para fiscalizar uma mesma atividade ou com poderes para punir o mesmo fato e o inútil dispêndio de tempo e de dinheiro público que isto representa acaba por mostrar outra face verdadeiramente obscura do problema, que consiste na existência de verdadeiras ilhas de autonomia absoluta, nichos de poder encapsulados dentro do estado democrático, que, em lugar de contribuírem para uma maior eficiência na prestação dos serviços essenciais, acabam por se tornar novos centros de poder dentro de poderes tradicionais já constituídos e sedimentados ao longo dos anos.
Para concluir, creio que qualquer debate sério acerca das possíveis soluções para o modelo caótico com o qual convivemos hoje em dia, e que tenha a pretensão de harmonizar e coordenar as atividades dos múltiplos entes públicos dotados de poder normativo, fiscalizador e punitivo deve, necessariamente, ter como norte a busca da eficiência, abandonando a lógica tradicional de estado soberano para adotar um modelo no qual o centro de poder seja deslocado em direção ao indivíduo.
(1) Distribuição Disfarçada de Lucros nas Instituições Financeiras – Uma análise crítica. Direito Sancionador e Sistema Financeiro Nacional, p. 125, Ed. Fórum. 2007
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