Acabo de terminar a leitura do excelente “The Empire of Lies”, do economista e jornalista libertário francês Guy Sorman (creio que ainda não traduzido para português). Ao modo dos melhores relatos de viajantes ocidentais que singraram terras e mares do Oriente em meados do século XIX, o volume é resultado de dois anos de trabalho em ambiente muito diverso do formigueiro humano entremeado de arranha-céus que marca a paisagem urbana de metrópoles como Pequim e Xangai.
Sorman buscou desvendar a China profunda: mergulhou no cotidiano interiorano, visitou líderes comunitários e religiosos, ouviu camponeses e todo tipo de gente comum. Descobriu uma história de exclusão social, inércia econômica, corrupção sistêmica, violência política e endemias mortais. Tudo marcado pela obediência que resulta do medo que os regimes totalitários são capazes de produzir.
Não é surpresa: tomado como paradigma empírico para a formulação teórica de políticas “alternativas” de desenvolvimento no cemitério das idéias latino-americano, o modelo chinês é, na melhor das hipóteses, um grande engano.
A superação da pobreza para 200 milhões de chineses através da inclusão no mercado de trabalho urbano e o crescimento da produção ao ritmo de dois dígitos ao ano é uma empresa que impressiona pelos números absolutos. Todavia, quando olhada de perto, a revolução industrial chinesa e seu exército de reserva de mão-de-obra semi-escrava instrumentalizado por um Estado autoritário – assim com seu similar inglês do século XVII – é desigual, parcial, incompleta e especialmente adversa para os mais pobres, para as mulheres e para as minorias étnicas.
Já se escreveu, mas cabe lembrar novamente: crescimento não é desenvolvimento. Se o modelo chinês é um arranjo excelente para cumprimento da tarefa da acumulação e da formação bruta de capital, o mesmo não se pode dizer sobre sua eficiência para a transformação do capital em renda e sua utilidade para uma distribuição equitativa dos ganhos.
A tarefa da acumulação primitiva consiste na arregimentação inicial de poupança. Na ausência de disponibilidades domésticas faz-se necessário capturá-las além mar. O câmbio super-desvalorizado chinês turbina a acumulação, capturando poupanças externas pela via do comércio internacional. A estratégia é clara: como indica a teoria, quando a vantagem competitiva dá-se em torno do preço final e está fortemente baseada em custos, o alvo principal do esforço produtivo deve ser a obtenção continuada de ganhos de escala. A “escala” é o que há de sobra. Todavia, quando tal vantagem é contestada por outro competidor, impõe-se a obtenção de ganhos de escala adicionais, sempre decrescentes. Inicia-se uma corrida de custos para baixo (“race to the bottom”) que resulta na redução acentuada dos salários dos empregados e do salário de reserva dos excluídos em segmentos cuja produção é intensiva em trabalho. Preserva-se a vantagem útil a acumulação ao custo da compressão da renda proveniente do trabalho.
Poupanças arregimentadas, é preciso canalizá-las para que financiem a tarefa do crescimento, através do investimento – que tem no retorno esperado seu indicador decisório crítico). As taxas de juros domésticas artificialmente baixas incentivam a busca de retornos mais atrativos pelos detentores de recursos disponíveis, direcionando-os preferencialmente para o setor produtivo em detrimento dos ganhos “rentistas”; evitando o empoçamento da poupança. Interferindo nos preços relativos e nas regras de um mercado ainda incipiente, o Politburo vermelho conduz o processo de alocação cumprindo a tarefa: converte poupança em formação bruta de capital fixo.
Todavia, o assombroso crescimento do estoque de capital na China globalizada não vem viabilizando o escalar contínuo dos degraus da produtividade. Era da se esperar: poupanças alocadas pela via da decisão discricionária estatal ou por um mecanismo de preços relativos artificial alcançam investimentos de baixa produtividade e não maximizam a geração de renda. Ademais, quando o retorno é alto, mas a produtividade é baixa, o investimento (im)produtivo não se traduz em oferta ampliada (preços mais baixos e quantidades mais altas), não havendo transferência de excedentes para o consumidor. A ausência do mercado livre produz perda de eficiência e bem-estar.
Se o colosso chinês não alcança os primeiros degraus da escada da produtividade de tão pesado, seu destino com relação à distribuição é mesmo o fundo do poço.
No papel de mecanismos distributivos alternativos, mercado e Estado funcionam de maneiras distintas. Em tese, enquanto o mercado assigna rendas de acordo com as capacidades produtivas ofertadas pelos indivíduos ativos (em geral, oferecendo prêmios elevados por anos adicionais de escolaridade), o Estado assigna recursos de modo a assegurar necessidades básicas dos inativos, assistir prioridades dos excluídos e equalizar condições iniciais entre os retardatários, além de prover bens públicos e meritórios de utilidade geral.
Na prática – como revelou-nos Mancur Olson em sua análise da lógica da ação coletiva –a discricionariedade estatal é refém de uma escolha pública pretensamente coletiva capturada pela agenda de interesses específicos de minorias sociais que vencem o jogo político (utilizando-se do poder de barganha para converter-se em maiorias políticas no âmbito do processo decisório dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário).
O Estado autoritário chinês capturado pela oligarquia política e social formada pelos membros do partido comunista é o modelo acabado deste seqüestro. Ademais, ainda que um dia reste liberto, a miopia estatal – seja chinesa ou de qualquer nacionalidade – nunca poderá dar conta a contento de uma tarefa cujo fator crítico é a focalização dos recursos e que opera-se através de um pacto federativo fundado no princípio da subsidiariedade.
Enfim, um Estado repressor e oligárquico, manipulador de um simulacro de mercado alocador ineficiente de poupanças e patrocinador de uma estratégia de crescimento baseado na semi-escravização dos incluídos e no abandono dos excluídos não pode servir de desenvolvimento para nenhuma nação que pretenda ser tratada como tal.
Na China não há lições para o Brasil; exceto a de como produzir a maior desigualdade social do planeta. Mas para esta tarefa, não necessitamos de professor.
One Comment