Autor Convidado: Paulo Roberto de Almeida
As relações efetivas entre Fidel Castro, enquanto líder político cubano, e o Brasil, enquanto país e sociedade, são, ao mesmo tempo, esporádicas e intensas. Esporádicas elas o são, obviamente, em vista dos reduzidos contatos ocorridos no plano oficial ao longo do último meio século: contam-se nos dedos de uma só mão as visitas recíprocas. Intensas elas também sempre foram, uma vez que a presença de Fidel – e de Cuba – na imprensa brasileira tem sido avassaladora, em volume absolutamente desproporcional à sua real importância para a vida prática do Brasil e de sua sociedade. Talvez essas relações possam ser resumidas numa única expressão: renúncia da inteligência. Este é provavelmente o sentido que atribuo à atitude beata, ou complacente, assumida pela imensa maioria dos intelectuais brasileiros e de grande parte dos jornalistas de opinião em face de uma situação que constitui um dos casos mais notórios de que se tenha notícia de ditadura personalista. De fato, as matérias sobre Cuba que se lêem nos meios acadêmicos e jornalísticos do Brasil são tanto complacentes na sua forma – uma vez que tendem sempre a assinalar o embargo norte-americano como fonte dos males passados e presentes do pequeno país caribenho – quanto superficiais em conteúdo, já que carentes de visão crítica naquilo que seu personagem principal mais encarna: o ditador absoluto de uma ilha convertida praticamente em sua “fazenda” pessoal nos últimos 47 anos. Conhece-se muito pouco, no Brasil, das duras realidades da vida cotidiana em Cuba, assim como das duras materialidades do castrismo enquanto sistema político dominado pela figura ímpar do ditador cubano. Na verdade, essas realidades nos chegam envolvidas numa aura de generosidade idealista e de encantamento romântico, tal como propagandeadas pelos aliados do regime, que estão longe de refletir as agruras efetivas do povo cubano. A literatura econômica e política de qualidade sobre Cuba, produzida em sua maior parte nas universidades americanas, nunca foi traduzida e publicada no Brasil. O que aqui se teve de mais conhecido foi o livro de um jornalista, chamado A Ilha, que conheceu sucesso estrondoso, tendo sido aclamado de maneira complacente, justamente, pelos habituais formadores de opinião. Sua contribuição efetiva para o conhecimento da real situação na ilha foi pouco menos que marginal, tendo em vista a falta de isenção de seu autor em considerar o ponto de vista do cubano comum. Os intelectuais progressistas do Brasil, sempre prontos a veicular o seu horror em face das operações de guerra de Israel ou dos EUA no Oriente Médio e a manifestar sua absoluta desconformidade em relação aos prisioneiros ilegais da base americana de Guantanamo, foram particularmente silentes quando, há dois anos, o regime ditatorial cubano condenou a duras penas de prisão dezenas de dissidentes políticos e fuzilou, depois de rápido julgamento, os autores de um seqüestro de um barco que estavam apenas tentando fugir da ilha. Essas decisões não resultaram de uma tramitação normal do sistema judiciário cubano, mas derivaram diretamente da vontade pessoal do líder político cubano, como enfatizaram diversos observadores independentes na ocasião. Difícil de explicar a pouca atenção que se dá no Brasil a fatos como esse, que causariam horror se fossem cometidos em outros países, se não fosse pela absoluta complacência com que são aqui recebidos notícias e fatos relativos à vida política na ilha. Normalmente se aceita, entre esses acadêmicos, que os cubanos possam viver em “regime econômico especial” – isto é, caracterizado por privações constantes – e privados de liberdade política, apenas porque a ilha sofreria, supostamente, as dificuldades de uma situação de “embargo” imposta pelo imperialismo dos EUA (o que constitui, obviamente, um dos muitos equívocos cometidos por aquele país, mas isso não vem ao caso agora). O que esse embargo representa como justificativa ilegítima do ponto de vista das liberdades políticas em Cuba não é jamais posto em questão, uma vez que não haveria qualquer elemento lógico que o pudesse sustentar racionalmente. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao problema econômico: Cuba pode comerciar com quaisquer outros países, o país é membro original do GATT e da OMC e o embargo americano afeta marginalmente alguns fluxos comerciais e financeiros da ilha, sem impedir absolutamente sua inserção nos mercados globais de mercadorias e serviços. Os problemas econômicos cubanos derivam da ineficiência geral do seu sistema econômico, estatalmente centralizado, não do embargo americano. Seus problemas políticos derivam única e exclusivamente da vontade de seu líder em manter um regime de partido único, administrado pessoalmente por ele como única fonte possível de legitimidade política e institucional. O anacronismo de um e outro sistema, em pleno século XXI, é evidente, mas esse aspecto não aparece nas análises que se lêem no Brasil sobre os problemas da ilha. Agora que a pessoa do ditador caminha para o seu ocaso, sua figura não mais deveria comandar uma espécie de paralisia mental nos analistas acadêmicos em relação aos principais problemas da ilha. O primeiro ponto a ser refletido por eles, numa situação de transição da antiga liderança carismática para um sucessor designado, seria justamente este: porque regimes comunistas, supostamente ditaduras do proletariado, deveriam ter um tipo de sucessão de tipo dinástico, com arranjos familiares sendo conduzidos em prejuízo de uma consulta efetiva ao conjunto da população? Curiosamente, os dois únicos países que conheceram esse tipo de situação, nos últimos dez anos, foram as duas únicas ditaduras comunistas sobreviventes da era da Guerra Fria: a Coréia do Norte e Cuba. São os dois únicos países onde a falta de liberdade política e econômica é total, uma vez que mesmo na China e no Vietnã, ainda formalmente socialistas, as franquias econômicas e os direitos políticos têm sido ampliados de forma significativa nos últimos anos. O desaparecimento do ditador cubano poderia suscitar um tipo de reflexão que raramente se colocou no Brasil: sobre a natureza essencial do regime cubano e os males que daí derivam para a imensa maioria da população da ilha. Aqueles que se escudam numa suposta excelência do sistema cubano de saúde ou nas supostas maravilhas de seu sistema educacional provavelmente nunca leram análises isentas sobre o funcionamento real desses dois sistemas, ou sobre as condições efetivas de seu fornecimento, preferindo ater-se à propaganda feita pelo próprio regime em torno desses dois únicos bastiões do que resta de credibilidade social. O mais provável é que o desconhecimento da real situação na ilha continue marcando as análises dos formadores de opinião no Brasil, a despeito das inúmeras fontes americanas, isentas, que estão desde muito disponíveis ao freqüentador da internet. Mas, o desaparecimento do ditador poderá, pelo menos, retirar do caminho um obstáculo mental à elaboração de análises mais acuradas e fiáveis sobre a difícil situação da ilha. A inteligência analítica não terá mais porque ficar toldada pela figura carismática de um líder político que já teve seu momento de glória na história e que, desde muitos anos, tornou-se, simplesmente, um ditador de literatura, como esses patriarcas de eras passadas que teimam em subsistir no presente. Seria simplesmente patético, se não fosse trágico para a população cubana. Esta é, pelo menos, a esperança de um leitor habitual de matérias sobre as realidades cubanas.
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