Há gestos que falam e falas que são gestos. Admoestar entre o arrogante e o zombeteiro os consumidores que, nos aeroportos brasileiros, são esbofeteados por uma recorrente e criminosa mendacidade governamental, receitando um ‘relaxem e gozem’, tem a mesma fonte do gesto indicativo do ato sexual, o famoso ‘tampar e cobrir’ ou o ‘olha nós neles’, esmiuçado por Câmara Cascudo; o ‘top, top, top’ com o qual um assessor especial do presidente da República comemorou uma suposta prova de que os ‘nossos inimigos tomaram dentro’ porque, afinal de contas e pelas últimas notícias, a culpa do horrendo desastre que ceifou a vida de centenas de pessoas seria do comandante e não do governo. Como se a tragédia prevista, inclusive por mim, na minha crônica de 27 de junho, pudesse ser esgotada no salvacionismo que se abriga no governo Lula e no paradoxo de lucrar com o que dá certo (sobretudo com a tal ‘herança maldita’), esquecendo ou se escondendo do que dá errado.
Que contraste fazem esses gestos com o imagem de um João Havelange carinhosa e pausadamente, como mandam os atos solenes e os grandes rituais, sair beijando as faces enlevadas de cada uma das jogadoras dos três times de futebol feminino ao entregar, a cada uma delas, as medalhas de bronze, prata e ouro que foram conquistadas exclusivamente pelo seu desempenho e talento.
De um lado, os poderosos literalmente lançando mão da linguagem vulgar dos bordéis, esquinas e mercados; do outro, o beijo cerimonial à direita e à esquerda do rosto dos vitoriosos e dos derrotados, confirmando que eles são parte de uma mesma esfera, pois uns não valem sem os outros, em substituição ao velho e batido aperto de mão que distancia e individualiza.
Coisa rara essa coincidência de gestos, expressivos daquilo que temos de mais torpe ou nobre; gritantes essas expressões contundentes de suavidade ou vileza, que num primeiro momento revelariam dois ‘Brasis’ ou dois pedaços de um mesmo país que sistematicamente se recusa a ver-se a si mesmo no seu próprio espelho. No caso, na rude nitidez do gesto estereotipado que mostra como lidamos com os adversários no campo do esporte e da política.
A expressão com que condescendentemente nos insultou do alto de seu narcisismo hoje ministerial Marta Suplicy, tem uma longa história e comporta muitas variantes, todas denunciadores, tanto de um machismo atroz, quanto dos preconceitos com que os países puritanos situaram a dramaticidade contida nos encontros sexuais. Um dos mitos de origem da expressão vem da velha e aristocrática Inglaterra. Nas vésperas de partir para sua lua-de-mel, uma jovem princesa inconsciente e avessa à sensualidade, descobre que havia sexo no casamento. Incapaz de imaginar o ato sexual, quanto mais não seja, pela posição ridícula dos corpos em conjunção, a jovem tem uma conversa franca com a mãe. Seria mesmo verdade que marido e mulher, depois do mais nobre cerimonial, faziam? A mãe – velha rainha experimentada nas coisas do mundo e conhecedora da sofreguidão veloz dos homens – produz a frase realista e consoladora: ‘Minha querida’, diz ela como se estivesse bebendo uma chávena de chá, a coisa acaba logo, ‘relax and enjoy’.
Ou seja: sendo impossível modificar ou escapar da situação, ‘relaxe e goze’. Faça, como estamos fazendo no Brasil: aproveite a baixa do dólar e, no aeroporto em colapso, tome um vinho ou um uísque importado; jogue cartas com os amigos; improvise um travesseiro com suas valise; faça xixi pelos corredores; reze; leia; e, sobretudo, aprenda que tudo vai passar e que nós ‘cuidamos’ de você como jamais ocorreu ‘neste País’.
A atitude dos companheiros trai a visão tradicional do poder à brasileira. O poder aliado ao ‘Você sabe com quem está falando?’, que separa os superiores, isentos dos espaços públicos, e os comuns, condenados a suportá-los. No gesto e na fala, repete-se, revelando continuidade, a caricatura acabada do que, no governo militar, chamava-se de ‘público interno’ e o ‘externo’; entre os que mandam e o povo, axiomaticamente excluído da cidadania que se funda no direito à igualdade. Azar o palácio ter paredes de vidro. Antigamente, elas eram feitas de pedra.
Se o problema fosse de outro governo, seria o caso de destruir o aeroporto; mas como é algo ‘nosso’, resultante, como confirmou um outro ministro, de um aumento positivo do público que voa, ‘relaxe e goze…’ A nomenclatura sabe que as instituições destinadas a gerenciar o transporte aéreo foram as garras. Mas como o que se faz em casa não se repete na rua, deixemos tudo como está para ver como é que fica, enlaçado num ‘relaxe e goze’ que distingue os que andam com os aviões pagos pelo povo; e o povo que é obrigado a usar o duopólio aéreo sem controle estabelecido no governo Lula.
Espera-se – e eu muito particularmente desejo que o ministro Nelson Jobim subverta essa divisão entre o interno e o externo – que essa segmentação, que nas democracias é um crime manter e ignorar, seja superada. A repulsa que sentimos ao ‘relaxe e goze’ e ao ‘top, top, top’ fala da impossibilidade de tolerar e manter uma ética de irresponsabilidade para o governo, e a norma de uma aviltante igualdade para baixo para as pessoas comuns, os bestalhões que pagam impostos e seguem a lei.
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