Autor Convidado: Mauro Godoy Prudente
Os críticos de Malthus nunca negaram sua descrição teórica da atuação do “poder da população”. A doutrina darwinista da evolução pela via da seleção natural, apenas ratificou e universalizou este princípio, mostrando que todas as espécies vivas tendem a multiplicar-se segundo uma progressão geométrica. Agregou a ele, porém, a idéia de que variações orgânicas aleatórias surgem nos indivíduos e que algumas dessas variações podem ser vantajosas para os mesmos. Pelo princípio da hereditariedade, haveria uma tendência a legar essas variações para as gerações seguintes. Darwin conservou também o princípio malthusiano da parcimônia com que a natureza provê os meios de subsistência. Assim, se a natureza, por um lado, é pródiga em prover a vida, por outro lado coloca-a sob estritos limites por meio da escassez de alimentos. O foco da crítica dos adversários dirige-se ao princípio malthusiano segundo o qual os alimentos crescem em uma progressão aritmética. De acordo com os primeiros, o avanço científico e tecnológico dos séculos XIX e XX tornou falsa a premissa de acordo com a qual “Os meios de subsistência crescem numa progressão aritmética”. Ora, disso resulta que o cenário malthusiano como um todo é falso e deve ser abandonado. Porém, existe um outro modo de examinar a questão que raramente é abordado pelos críticos. O ponto focal da questão passa a ter como referência o conceito de “meios de subsistência”. A teoria malthusiana foi produzida numa sociedade agrária. Na Inglaterra, a população urbana ultrapassou a rural apenas a partir da segunda metade do século XIX, embora o país fosse há muito tempo uma potência mundial. Os incrementos na produtividade agrícola eram ocasionais e esparsos, o que resultava num pequeno aumento na produção do setor. Malthus, obviamente não desconhecia o impacto positivo do crescimento econômico sobre a população. Negava apenas que a população pudesse crescer acima da oferta global de alimentos. Diz Malthus: “A razão pela qual a maior parte da Europa é mais populosa hoje do que era no passado é que a atividade dos habitantes fez com que esses países produzissem uma maior quantidade de meios de subsistência humanos. Porque, penso eu, isso pode ser formulado como um ponto de vista para não ser contestado que, tomando-se uma extensão suficiente do território para incluir dentro dele a exportação e a importação e tolerando-se alguma variação por causa do predomínio da opulência ou dos hábitos frugais, a população guarda constantemente uma proporção uniforme em relação ao alimento que a terra é levada a produzir”. A revolução industrial, cujos efeitos econômico-sociais são posteriores ao Princípio da População, teve como sua principal conseqüência o aumento da eficiência da atividade econômica em geral. A indústria urbana passou a ser o pólo dinâmico da economia, relegando a agricultura a um segundo plano. Com isso, a industrialização trouxe consigo, de modo inevitável, a urbanização. Assim, para sermos caridosos com o argumento malthusiano, devemos transportá-lo para o cenário das sociedades urbano-industriais modernas, cuja característica principal, segundo Raymond Aron, é o crescimento da produção de bens e serviços, numa escala nunca antes sonhada pela humanidade. Em Dezoito Lições Sobre a Sociedade Industrial, diz Aron: “A teoria do crescimento afirma que as economias modernas [urbano-industriais] são essencialmente progressivas; que a progressão se define pelo progresso técnico, ou o crescimento do rendimento do trabalho, o que implica numa atitude racional e, por assim dizer científica, em relação à produção [dos bens em geral]”. As economias urbano-industriais são progressivas, crescem em escala geométrica, algo sem antecedentes na história humana. Com a elevação da produtividade do trabalho, cresce também a riqueza social. Para uma constatação empírica deste fato, basta examinar a evolução da renda per capita dos países industrializados (Brasil inclusive) nos últimos cem anos. Isto não implica, porém, que o crescimento econômico seja condição suficiente para que todos os males sociais estejam resolvidos. Dentre esses males, certamente a miséria é o mais importante. O crescimento econômico constante, quando está situado acima do crescimento demográfico, é somente capaz de criar as condições materiais para a erradicação dos problemas fundamentais que afligem as sociedades. É para este novo cenário que se deve transportar o conceito de “meios de subsistência”. Assim, este conceito passa a incorporar novos elementos que não eram ao menos pensáveis ao tempo de Malthus. Emprego, educação, saúde, habitação e previdência são meios de subsistência indispensáveis aos indivíduos nos dias de hoje, tal como eram os alimentos no final do século XVIII. Hoje eles fazem parte do rol dos “direitos sociais”, sendo reconhecidos como tais pela ONU. Em nosso país, são direitos constitucionalizados há longo tempo. Como se vê, do ponto de vista de uma crítica crítica (que aplique as categorias hegelianas examinadas acima, aos opositores de Malthus) somente um intelecto abstrato, unilateral e simplificador é capaz de pensar que, nos dias de hoje, a relação existente entre o crescimento demográfico e os meios de subsistência – tratada de modo pioneiro por Malthus – resume-se ao aumento da oferta de alimentos! Para dar um simples exemplo, dentre tantos possíveis: os alemães orientais não migraram para sua homônima ocidental em busca de alimento! Tampouco o fazem os mexicanos (e outras nacionalidades) que cruzam diariamente o Rio Grande! Buscam, obviamente, os meios de subsistência que não encontram em seus países de origem. O caso brasileiro é tragicamente ilustrativo dessa visão simplificadora da realidade. Nosso país teve um crescimento demográfico muito semelhante ao preconizado por Malthus para as colônias americanas: no período 1900/2000, a população passou de 17,4 para 170 milhões/hab.; num crescimento geométrico de 2,31% a.a. A população urbana, no período 1940/2000, passou de 28 para 140 milhões/hab., numa taxa geométrica de crescimento de 2,72% a.a. Para estabelecermos uma comparação que ilustra a pujança do crescimento demográfico brasileiro, os EUA, embora sendo o país que mais recebeu imigrantes na história mundial, demorou 52 anos para dobrar sua população: 100 milhões em 1915 – 200 milhões em 1967. O Brasil dobrou a sua população nos seguintes períodos: 1900/1940; 1940/1970; 1970/2006. Esse incremento fantástico da população (tanto pelos seus valores absolutos, quanto pela sua constância no tempo) não foi acompanhado de um aumento sistemático nos “meios de subsistência” em geral. Resultado: uma crise social sem precedentes. Não há emprego para os jovens, segurança para os cidadãos, saúde para os enfermos, educação de qualidade para as crianças, habitação para os favelados das periferias urbanas, proteção para as jovens contra a gravidez precoce, previdência para os velhos, justiça rápida para os conflitos. Por outro lado, o ecossistema sente os efeitos deletérios de uma população que cresce sem controle: a poluição dos rios e a devastação das matas, a desertificação da terra e a poluição do ar são alguns exemplos dos efeitos do crescimento demográfico brasileiro. Mas, se diante deste quadro dantesco, alguém invoca o crescimento demográfico como sua causa eficiente, é logo taxado de malthusiano! E, para desqualificar as pretensões do adversário, segue-se o velho ramerrão teológico-esquerdista: Malthus está superado! Não pelos fatos: em 1950, a população total do Brasil era de cerca de 52 milhões de almas. Duas gerações depois, os institutos oficiais admitem que o total de miseráveis (excluindo-se desse cômputo os pobres) existentes em nosso país é cerca de 42 milhões! Diante das evidências, já não é mais possível esconder o esqueleto do velho reverendo anglicano inglês dentro do armário. Sua profecia, depois de dois séculos, mantém-se rigorosamente atual: quando a população cresce acima dos “meios de subsistência”, aumenta também a miséria de amplas parcelas dessa mesma população. Políticas públicas assistencialistas, destinadas como dizia Malthus, no seu Princípio da População, a “remediar a freqüente miséria do povo”, têm alcance limitado. Numa perspectiva de longo prazo, essas políticas produzem mais malefícios do que benefícios, tanto aos seus destinatários, quanto à coletividade como um todo. Somente o trabalho rompe com o círculo vicioso da miséria. Pois, como adverte Malthus: “Pode-se dizer que, de certo modo, as leis [para os pobres] criam os pobres que mantém”.
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