Não se deve contar com o ovo no fiofó da galinha. Assim aprendi o ditado quando criança, embora tenha sido como adulto que muitas vezes tomei ciência que a sua impermeável, compacta e franca lucidez continha uma humana e relativa verdade.
É que, sendo brasileiro, logo percebi e, mais que isso, comecei a experimentar o inesperado dentro do esperado. Das loterias feitas com palpites certeiros que não saíam, aos encontros amorosos nos quais levava um bolo, até as incongruências do mundo público nacional, onde o inesperado das mentiras tem sido muito mais constante do que o esperado das verdades.
Daí a descoberta que até mesmo as mais indiscutíveis verdades, expressas no mais denso bom senso dos ditados populares eram, como tudo o mais, relativos. Qualquer truísmo ou verdade verdadeira – essas pérolas de bom senso, como “quem semeia ventos colhe tempestades”; “não roubamos e não deixamos roubar”; “mulher oferecida não é comida”; “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” – tem o seu lugar ou assento de eficiência e felicidade lógica, conforme diziam os semanticistas, mas possui também o seu crucifixo de inverdade e o seu coeficiente ou, como diriam os economistas, seu índice de contradição.
Neste sentido, e dependendo do contexto, os lemas indiscutíveis – por exemplo, e com o devido respeito, “quem tem c… tem medo”; ou “passarinho que come pedra sabe o c… que tem” – podem transformar-se em ditos ofensivos ou em plena e complicada frustração, como tem ocorrido – por exemplo – com o milésimo gol do Romário. Pois neste caso, pergunta-se, com lídima reverência e legítima curiosidade, como não contar com o ovo no c… da galinha (o gol do Romário), se os galos estão em volta e se o baixinho é um tremendo goleador?
Sem querer transformar a croniqueta num miniensaio filosófico, com aquelas citações dos usuais suspeitos – Bauman, Maffesoli, Foucault, Weber, Bourdieu, Maquiavel ou, é claro, o último escritor estrangeiro –, típicas de quem não leu, não posso deixar de acentuar o fato que me intriga: a extraordinária capacidade brasileira de transtornar, relativizar, pôr de quarentena, invalidar, reverter e até mesmo erradicar todo e qualquer ditado, mote, dístico, slogan ou lema que, historicamente estabelecia uma pausa, janela ou descontinuidade na sempre móvel e dinâmica paisagem humana, com uma pitada do bom senso, tipo “ao vencedor as batatas”, ou “independência ou morte”, ou “em terra de cego quem tem um olho é rei”, ou “não se fala em corda em casa de enforcado”, ou “os últimos serão os primeiros”, ou “quem tem telhado de vidro não joga pedras no vizinho”, ou “um burro carregando livros não é doutor”, ou “uma mão lava a outra”…
Pois basta sondar o que ocorre à nossa volta para descobrir que o Brasil vive o falecimento do bom senso, morto e devidamente enterrado por apatia, mendacidade, pragmatismo messiânico (ou seria messianismo pragmático?), preguiça, transmodernidade, egoísmo, insinceridade e, para ficarmos num ditado bem conhecido o qual, no nosso caso, comprova o inesperado na sua mais plena inverdade: desgraça pouca é bobagem!
O fato básico, o dado real, entretanto, comprovado pelo caso Romário é que, pelo menos no âmbito democrático de uma disputa futebolística – em que todos valem o mesmo diante das regras do jogo –, não se pode contar com o milésimo gol (ou com o ovo no c… da galinha). Pois no contexto das lutas igualitárias, a oportunidade que obrigaria a honrar matematicamente o prometido que, pelo ditado, é sempre devido; ou que garantiria ao craque que “de tostão em tostão vai-se ao milhão”, não tem cabimento.
Se no mundo antigo, um mundo governado por ditados quase sempre compensadores e conservadores (a riqueza não traz felicidade), as coisas tinham todas os seus lugares e havia um lugar para cada coisa, nos sistemas igualitários, onde a imagem da luta, da competição e do jogo exprime uma dinâmica de iguais que já não precisam mais dar aos pobres para emprestar a Deus, simplesmente porque os pobres são hoje, além dos destituídos, e dos excluídos do trabalho formal, uma enorme classe média pagante de infindáveis impostos, enquanto a previdência tem substituído a Providência, neste nosso mundo contemporâneo, regras impessoais, tipo “as leis valem para todos”, têm tomado o lugar dos velhos ditados, mostrando como suas esperadas verdades se transformaram em disparates inesperados, pelo menos no caso do Brasil.
Como o gol do goleador que não chega; como a insinceridade das promessas dos políticos que não são mais devidas; ou como a descrença no dito “águas passadas não movem moinhos”. Como não movem moinhos?, questiona o povo estupefato quando vê a mesma súcia de pessoas comandando e governando, com as mesmas águas de sempre, os moinhos de vento de nossas esperanças mortas. Essa esperança que ainda tem a coragem de afirmar que a ocasião faz o ladrão, que a mentira tem pernas curtas e que Deus escreve certo por linhas tortas!
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