Num gesto que provocaria a indignação de um crente na evolução linear dos seres e da sociedade, e como que a confirmar, a nossa pós-modernidade, o advogado austríaco Eberhart Theuer, pleiteia dotar de direitos políticos um chimpanzé que atende pelo nome de Hiasl. O macaco, que corre o risco de tornar-se mais um malfadado cidadão humano, tem 26 anos e, segundo a notícia, gosta de massas, de pintar e adora ver TV, mas detesta café. Ou seja, pode ser tão infeliz como qualquer um de nós, porque é capaz de escolher, esse pilar da humanidade moderna.
Lida internet, a nota remete a vasta experiência da Antropologia Social com sociedades nas quais os animais interagem com os humanos e, muitas vezes são promotores de cultura e civilização. Quem, aliás, não se lembra das histórias do tempo em que os animais falavam; ou do mundo de Walt Disney, um pioneiro, com o filme Bambi, da consciência ecológica?
O assassinato do planeta é, sem dúvida, o responsável por esse projeto de humanização concreta da natureza e de certos animais. Um gesto que os estudiosos do passado viam como a marca de primitivismo, aquele modo de pensar que confundia natureza e cultura, atribuindo uma pessoalidade enganada a montanhas, rios, árvores e animais. Era precisamente essa ausência de uma lógica discriminatória que revelava o selvagem: o primitivo que está, como falamos até hoje, na tal Idade da Pedra. Mil anos atrasado em relação a nós que, como compensação, vivemos a moralidade do proibido proibir, uma violência insuportável e uma vergonhosa desigualdade.
Na civilização, como sabem os franceses que inventaram o termo e o estilo, mas só agora começam a descobrir que é preciso virar a página da Revolução Francesa, as coisas têm hora e turno. O civilizado distingue o nu do enroupado, a casa da rua, a pessoa do privilégio, a faca do garfo e a dama do cavalheiro. Pena que essas marcas iniciais também se abriram para os radicalismos da ‘lógica da história’ para, em seguida, invadir a ação política na qual os fins justificam os meios e terminar na escravidão, no racismo dos holocaustos e das segregações étnicas. Esse racismo que, amparado em dados científicos, pensava saber com certeza quem era selvagem e quem era civilizado. Distinguir talvez tenha sido a marca desse ato civilizatório fundador da idéia de racionalidade e de civilização. Essa sociabilidade que instituiu o ideal e se arrogou o dever de civilizar todas as outras culturas, por ser a mais civilizada entre todas as humanidades do planeta.
Se a natureza da razão era distinguir, como misturar animais e homens, seja afirmando que o fogo pertencia à onça, como afirmam muitas culturas? Cabe ao assassinato ecológico, entre outras coisas, o mérito de aproximar, como faz o mais bárbaro crime de morte, o algoz da vítima, e assim construir inusitadas pontes onde antigamente havia apenas as margens de um vasto e intransponível rio. Um rio cujas águas separavam a razão da superstição; o primitivo do civilizado; a animalidade da humanidade.
Num planeta, senão animado de vida, mas pelo menos despertado para a interdependência de todos os seus reinos, descobre-se que existe mesmo uma totalidade na qual tudo está numa extraordinária e complexa relação. É preciso apagar o colorido das fronteiras nacionais, o que torna plausível não só conceder direitos de escolha ao chimpanzé Hiasl, mas de defender o bagre contra uma usina hidrelétrica que engendraria desenvolvimento a este país – numa verdadeira heresia ao desenvolvimentismo fácil e arcaico.
Na cultura que inventou o jogo do bicho, conforme estudamos – Elena Soárez e eu, no livro Águias, Burros e Borboletas, que passou em brancas nuvens -, esse pleito cívico para um macaco faz pensar. Por que não dar plena cidadania ao jogo do bicho (e ao jogo em geral), se jogar é algo indissociável do capitalismo de mercado, adotado pelo mundo e pelo governo? Se os mais respeitáveis, os mais bem-sucedidos e os mais ricos são justamente os cidadãos que sabem jogar na bolsa? Se até o Vaticano tem um banco? Se o especular com a moeda é certamente um risco tão imprevisível quanto uma roleta, conforme os especialistas em finanças escrevem nos jornais e ensinam nos livros, nas cátedras universitárias e nos programas de televisão? Por que não liberar o macaco (e os outros bichos), dando-lhes plena cidadania? Essa preciosa cidadania democrática da liberdade consciente que, regida por certas normas e pagando os devidos impostos, transforma paixões em interesses e lavagem de dinheiro e corrupção, em impostos?
Se em nome do povo se admite o controle da mídia; se em nome do desenvolvimento é valido ficar irritado com o bagre; se todos tem que ter responsabilidade fiscal; por que somente o governo pode ser o grande banqueiro do jogo no Brasil? Ou será que se acredita que apostar na mega-sena, nas loterias, nas raspadinhas não é jogar?
Quando é que o macaco vai ficar certo aqui no Brasil?
PS: Faça uma fezinha no macaco, caro leitor.
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