Eu entendo bem o nervosismo do Romário ao ver adiada a oportunidade de ‘furar’ o seu milésimo e glorioso gol.
Meu entendimento tem, entretanto, uma enorme camada de inveja. Pois o gol 1.000 do Romário me fez imaginar como seria o meu. O gol mil que fecharia a minha carreira com a inflação de zeros que o Brasil tanto admira.
– Mas, como, um milésimo gol, diz-me uma desagradável voz, se você não chegou a ser nenhum goleador? Muito pelo contrário, você sempre foi um perna-de-pau, incapaz – apesar do nome – de ‘matar’ qualquer partida!
Será? Indago a mim mesmo, enquanto uma outra voz – a que viu muitos filmes de Frank Capra – me reafirma que não existem pessoas sem gols e que todos estão sempre prestes a marcar o seu milésimo gol, tal como o nosso fabuloso Romário.
– Somos todos campeões e grandes goleadores!, repete a boa voz. O problema é que não enxergamos os nossos gols. Ou, pior que isso, fazemos muitos gols mas, não os tendo comemorado devidamente, esquecemos de quantos pontos, a despeito de todas as caneladas, fomos capazes de marcar. Sobreviver neste mundo cheio de sofrimento é ser um craque. Enterrar amigos e parentes, ter a coragem de estar com a morte e não acima dela é ser um grande goleador. Mais admirável ainda é enfrentar tudo isso na pobreza, mas em contato próximo com pessoas ricas que ‘têm tudo’ porque têm muito mais do que você.
As vozes não paravam e eu – juro, amigos leitores – lutava para voltar à minha trivial, mas segura, ‘sociologia da sociedade brasileira’, escrevendo uma crônica de fundo moral, mas, qual, o meu lado mediúnico simplesmente não deixava.
De repente, manifestou-se uma outra voz.
– Garoto – disse sem o menor respeito pela minha idade e posição profissional -, você fez o seu milésimo gol naquela conferência internacional, em Miami, quando argumentou contra a arrogância brilhante do professor Contreras e, ainda por cima, tripudiou em cima do sociólogo francês de narizinho empinado e boquinha redonda que tentava explicar o futebol pela guerra e foi fulminado com a sua observação:
– Mas, então, Jean Claude Patrick, temos de entender a guerra. Você apenas está substituindo uma coisa pela outra. Vai dizer – arrematou a voz – que aquilo não foi um gol mil?
Cala-te espírito indiscreto!
Eu quero simplesmente dizer que ninguém pode jogar só para o gol. Essa é obviamente a fonte da angústia do Romário. Jogar somente pensando no gol é pôr o carro adiante dos bois. No fundo, é um desacato aos processos sociais, uma inversão da lógica dos jogos. O gol decorre da partida, não o contrário. Do mesmo modo, o tal espetáculo do crescimento que representaria o milésimo gol do Brasil não chega com fórmulas políticas feitas com discursos demagógicos, ou com boas intenções. Vêm, isso sim, com ações permeadas de trabalho e coragem. Com muita coragem para pôr a imaginação gerencial para trabalhar, driblando a formidável burocracia administrativa, mental e social; as leis que sustentam privilégios corporativos e de classe, e um estilo de fazer política marcado pela insinceridade – pela concepção segundo a qual, no campo da ‘política’, os fins justificam os meios. Esse gol chega quando se luta contra a rotina dos mais variados nepotismos – dos de família aos ideológicos e partidários que, como mostra conclusivamente este governo, não estão em oposição nem em luta, como rezava a velha cartilha que o Brasil tem sempre o prazer de desmanchar…
– Seriam essas idéias o seu milésimo gol?, pergunta-me um outro poltergeist dando piparotes numa estante. Enquanto uma entidade situada à esquerda da falange que me assalta diz com voz grave e pausada:
– Falar é fácil… Pergunte a quem governa. Coloque-se no lugar dos Romários que chegaram lá e sabem que não é fácil marcar mil gols ou mudar um país, sobretudo quando existem tantos goleiros, traves, juízes comprados e defensores dispostos a fazer tudo para atrapalhar. Isso para não falar da bola que, como você bem diz no seu livro mais recente, corre mais que os homens…
– Mas com esses argumentos – eu grito, lutando pela minha consciência – não se muda nada!
– Ou se muda tudo, replica a voz. Pois o argumento do outro dentro de você é sempre a voz da sabedoria e da inspiração compassiva; é a fala da compreensão mais profunda que conduz a fraternidade. O futebol é interessante, continua o sinistro, porque os jogadores sabem exatamente o que se passa no interior uns dos outros. Essa compreensão profunda dos motivos alheios torna o jogo uma atividade transparente e, eis a surpresa para vocês, brasileiros, sincera! O mito do juiz ladrão é conhecido, a do jogador desonesto é surpreendentemente inexiste num país no qual a esfera pública é atravessada por desonestidade e o jogo político feito com o crédito falso das mais diversas espertezas.
Seria esse o nosso milésimo gol? Esse jogar sabendo que os adversários não têm um plano B, não confundem fins e meios, atuam emoldurados pelo campo da ética, e querem apenas que o vencedor seja mesmo o Brasil?
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