O Globo, 14 de janeiro de 2006 No outro dia, num táxi do Centro a Ipanema, apesar do aspecto de poucos amigos do motorista, rompi o silêncio para perguntar a ele o que estava achando do trânsito. A meu ver, pelo menos no Rio de Janeiro, na segunda semana de dezembro, estava fácil demais. Considerando ainda que as lojas não andavam cheias, parecia que o Natal de 2005 não seria pródigo. Continuei: “É que acho que este Natal será afetado pela crise política, mesmo que todo mundo diga que não.” Ele respondeu: “É, minha mulher tem comércio. Disse que está jogado às traças. Eu, mesmo, vou gastar no Natal e esperar o quê? A gente já tem gasto extra, pagando tudo mais caro com imposto para esses vagabundos nos roubarem. Que democracia é essa que me obriga a votar? Eu não quero votar e quero ter esse direito. Mas sou obrigado. Trabalho, trabalho, e parte do meu dinheiro vai forçado para político. Não tenho oportunidades, onde botar meus filhos para estudar, hospital para ir e sou obrigado a votar nesses vagabundos — uns ignorantes que não deixam o povo trabalhar em paz.” E assim foi até a Maria Quitéria, onde saltei. Quase não falei, pois ele engatou naquele longo desabafo liberal-democrata, de quem tem deveres e quer direitos, não me dando chance de argumentar nem a favor, nem contra. Lembrei-me disso ao ler a entrevista do senador Jorge Bornhausen nas páginas amarelas da última “Veja”, em que ele recusa veementemente um posicionamento do PFL à direita do espectro político brasileiro. “O PFL é um partido de centro.” “A direita não cabe no figurino brasileiro.” “Não há como existir direita num país que não é desenvolvido.” Lembrei-me também de FHC, num artigo, devolvendo a ofensa a Lula: “Liberal é você!”, e de Arnaldo Jabor, afirmando corretamente que as propostas da esquerda brasileira se mostraram furadas e atrasadas, mas defendendo a invenção da nova esquerda. Opiniões que, no fundo, mostram que o Brasil está capenga, pulando numa perna só, um verdadeiro saci-pererê. Não é que eu defenda os rótulos — eles têm sido usados para que se descartem de antemão quaisquer idéias com que os donos do debate não concordem. Mas se só há esquerda, para onde se deslocará o pêndulo que trará renovação política e modernização das instituições brasileiras, depois do fracasso da esquerda? Por que os que defendem uma democracia de mercado moderna e suas instituições, fortalecendo os direitos individuais e a capacidade do cidadão de os fazer valer, não podem defender suas idéias dando-lhes o devido nome? Por que, para defender uma agenda de modernização inspirada pelo sucesso de democracias de mercado consolidadas, que possam dar chances reais aos pobres de sair da pobreza por meio da educação e do trabalho, é preciso se desculpar e usar eufemismos? O senador Bornhausen negou ter medo de dizer que é de direita, mas não explicou que direita é essa que ele não quer ser. A esquerda tradicional, em nome dos interesses do proletariado, e a direita tradicional, em nome dos interesses da burguesia, giravam em torno da ditadura. Ambas, curiosamente, davam ao Estado papel central para a transformação social. As ditaduras tradicionais foram, acima de tudo, ditaduras estatistas. Sem mudar o papel atribuído ao Estado, que por isso só faz crescer, a esquerda e a direita modernas incorporaram a idéia da democracia. O liberalismo, que por aqui ou não existe ou é uma espécie de xingamento, nasceu moderno no século XIX e esta é sua vantagem histórica comparativa — nunca aceitou a ditadura como organização social nem o Estado como agente transformador da realidade. Um liberal-democrata pode estar mais à direita ou mais à esquerda, dependendo de como se posicione sobre valores que organizam a vida social, mas em nenhuma hipótese a sociedade baseada nesses valores resultará num Estado opressor. A proposta liberal, que pouquíssimo tem a ver com as políticas econômicas que levaram esse nome no Brasil, organiza-se em torno do Estado de direito e da liberdade e responsabilidade dos indivíduos para promover seu próprio bem-estar, em contraste com esquerda e direita tradicionais. A pergunta a ser feita a um político brasileiro — Lula, Bornhausen ou FHC — é se ele é um liberal-democrata ou não. Caso diga não, pouco importa saber se é de esquerda, de direita ou de centro, já que, como a própria História recente do Brasil mostra, suas propostas de organização da sociedade sempre implicarão o papel central e crescente do Estado. Um futuro de crescimento sustentado para o Brasil depende de que nossos líderes aprendam o que sabe aquele motorista — que o papel do Estado é garantir e facilitar a liberdade e a capacidade empreendedora dos indivíduos e não o de regulá-los e atrapalhá-los em nome de interesses que se confundem com os dos próprios políticos. Intelectuais, professores universitários, jornalistas, líderes políticos têm o dever de esclarecer para o indivíduo comum, que quer ver seus filhos com mais oportunidades do que as que ele teve, que há algo além da esquerda, que foi experimentado em outras sociedades e tem resultados palpáveis no caminho para a realização de seus cidadãos, com liberdade e oportunidade de sucesso. Há fórmulas, que já deram certo em outros lugares, baseadas na força do indivíduo para competir e empreender e, assim, galgar os degraus da escalada social.
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