“Precisamos ter cuidado com a premissa da incapacidade popular”.
Com essa frase exposta no Seminário Liberdade em Debate, Paulo Uebel, ex-diretor-executivo do Instituto Milenium, chamou a atenção para a exagerada intervenção do Estado na autonomia privada, que vem amparada em uma visão elitista, já impregnada em nossa sociedade, de que um grupo de ‘sábios’, detentores de parcela do Poder, define a forma como devemos nos portar.
Nada obstante o alerta tenha como foco o papel do Estado em relação à atividade econômica, leva-nos também a refletir sobre os limites da intervenção do Estado em todas as searas da sociedade.
No que concerne ao judiciário o debate se estabelece em relação ao limite das atribuições e dos poderes dos juízes na condução dos processos.
O debate não é novo, mas ressurgiu apimentado pelas inculpações de que a opção pela ampliação da ‘musculatura’ do juiz frente às partes e seus advogados é inspirada nas ideologias autoritárias que floresceram na Europa antes da Segunda Guerra, haja vista o notório intuito de comprimir a vontade das partes.
Fruto da ideologia autoritária ou não, o certo é que um sistema que se concentra na figura do juiz, e não das partes, verdadeiras interessadas no bem da vida em disputa, não tem razão de ser, especialmente nos dias atuais – nos quais não mais se deseja um Estado máximo e se pretende respeitar a liberdade e a autonomia privada -, diante da constatação de que é menos democrático e célere e mais oneroso para o Estado do que um sistema no qual se reserva maior autonomia para as partes e seus advogados, além de ser tão efetivo quanto este na apuração da verdade.
Nada obstante, os juristas pátrios insistem que o rumo a ser seguido pelo processo civil, de sorte a obter um processo mais justo e célere, é o da concessão de maiores poderes e atribuições ao juiz e o da redução de prazos e oportunidades para as partes.
Espera-se do juiz, destarte, que participe intensamente de cada um dos milhares de processos que tem sob a sua direção desde o seu recebimento até a sentença, passando, neste iter, pela fase probatória, na qual, além de determinar as provas a serem realizadas, interfere – independentemente da vontade das partes – na sua produção.
E, em razão disso, como diz Alvarado Velloso, as sucessivas reformas das leis processuais têm “resultado ser sempre mais do mesmo: outorgar maiores poderes aos juízes e envolvê-los espiritualmente na solução de todos os assuntos nos quais intervirão, aumentar as tarefas que devem cumprir pessoalmente, restringir cada vez mais as defesas dos direitos dos particulares, reduzir a termos impensáveis os prazos processuais para as partes litigantes, fazer mais angustioso o trabalho da advocacia, adotar mais e mais criações procedimentais que terminarão por converter-se em estafantes gincanas para os litigantes etc.”.
E o projeto de Código de Processo Civil apresentado pela comissão de juristas presidida pelo Ministro Fux e que hoje tramita na Câmara dos Deputados, não foge a regra: propõe o incremento dos poderes e atribuições do juiz.
Contudo, a acentuada participação do juiz na direção e instrução do processo, tendo em vista que lhe impinge responsabilidades e atribuições, se configura desserviço à celeridade do processo, além de encarecê-lo para o Estado. E, de outro lado, pouco ou nada contribui para a segurança jurídica e para a busca da verdade.
Para que profira uma decisão justa, que é o desejado pela sociedade, o juiz não necessariamente tem que ser onipresente, participando de todos os episódios do processo, acumulando atribuições, poderes e responsabilidades em suas mãos. Se for assim, decerto apenas os juízes geniais lograrão cumprir a tarefa, considerando o volume abismal de eventos de que deverão tomar parte.
E não se está a propor a ‘privatização’ do processo, pois não há negar que a função jurisdicional é prerrogativa inalienável de soberania, de sorte que jamais pode ser subtraída do Estado.
Todavia, do ambiente privado pode-se buscar o exemplo. Decerto, nas grandes empresas, tão bem sucedidas, não se espera que o presidente ou mesmo os diretores se envolvam em todas as questões, pois é inviável. Confia-se a eles a fixação de diretrizes e as decisões importantes.
Argumenta-se, entretanto, que a participação pessoal do juiz e o aumento dos seus poderes, além de possibilitarem que chegue mais próximo a verdade, permitem que promova o equilíbrio entre as partes do processo.
Não se nega, é claro, que num processo possa haver uma parte mais frágil do que a outra, dado o inegável desequilíbrio sócio-econômico ainda dominante no país. Contudo, como disse Franco Cipriani, “a ajuda as partes débeis e incultas, aos trabalhadores, aos inquilinos, aos pobres e a todos os deserdados do nosso mundo deve ser providenciada pelo legislador substantivo, ou seja, o Parlamento, fazendo leis que lhes confiram direitos, não pelo juiz, que deve aplicar a lei e dar razão a quem, segundo a lei (e as provas), a tiver”.
Ademais, hoje, e cada vez mais, advogados e partes sabem o que precisam fazer para defender seus interesses. Por evidente, o acesso à educação se amplia e a informação é cada vez mais acessível. De outro lado, a habilitação para a advocacia é rigorosa, assim como o ingresso na advocacia pública, o que ensejará uma gradual melhora no nível dos profissionais.
Desta forma, nada justifica agir o juiz como arrimo das partes. Menos ainda deve o juiz fazer o papel de super-herói, buscando sempre tirar do rico para dar ao pobre. Por primeiro, isso coloca em cheque a sua imparcialidade, qualidade essencial do julgador, depois, não se pode olvidar que são as partes as melhores defensoras dos seus interesses; refaz-se a advertência: “precisamos ter cuidado com a premissa da incapacidade popular”.
Por fim, sejamos realistas: o juiz não tem condições de cumprir todas as suas atribuições em cada um dos milhares de processos que tem sob a sua batuta. Não lhe é possível ser, no dizer de Cipriani, “o diretor e o propulsor vigilante, solícito e sagaz” de todos eles. De outro lado, nada impede que a propulsão do processo seja delegada, em boa medida, às partes e seus advogados, maiores interessados na resolução do conflito.
Destarte, talvez estejamos insistindo em andar no sentido errado. Quiçá a solução para se obter uma Justiça eficiente seja reduzir as atribuições do juiz. Deixemo-lo com a sua função primordial: o julgamento, para que o faça com a temperança necessária e num tempo mais razoável.
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