Recebi ontem uma folha de papel com a divertida piadinha, provavelmente criada por algum gaúcho. Para quem se lembra da desmistificação do spam sobre os postos BR, eis um exercício similar. Mostrarei como a piada, embora engraçada, representa uma não-economia e, além disso, mostrarei que, transformando a cidade retratada na piada em uma sociedade com características realmente econômicas, o resultado é melhor ainda.
Não entendeu nada? Então, comece com a história original:
Maio de 2009, numa cidade litorânea do RS, muito frio e mar agitado, a cidade parece deserta…
Os habitantes estão endividados e vivendo as custas de crédito. Por sorte chega um viajante rico e entra num pequeno hotel. Ele saca uma nota de R$ 100,00, põe no balcão e pede para ver um quarto.
Enquanto o viajante vê o quarto, o gerente do hotel sai correndo com a nota de R$ 100,00, e vai até o açougue pagar suas dívidas com o açougueiro. Este pega a nota e vai até um criador de suínos a quem deve e paga tudo. O criador, por sua vez, pega também a nota e corre ao veterinário para liquidar sua dívida. O veterinário, com a nota em mãos, vai até a zona pagar o que devia a uma prostituta (em tempos de crise, essa classe também trabalha a crédito). A prostituta sai com o dinheiro em direção ao hotel, ao qual às vezes levava seus clientes. Como ultimamente não havia pago pelas acomodações, acerta a conta.
Nesse momento, o gringo chega novamente ao balcão, pede a nota de volta, agradece, mas diz não ser o que esperava. Ele sai do hotel e da cidade.
Ninguém ganhou nenhum vintém. Porém, agora toda a cidade vive em paz!
Moral da história: quando o dinheiro circula, não há crise!
A piada é engraçada, mas devo concluir também que existe ao menos uma cidade litorânea no RS na qual o tempo não existe. Ou então o gringo da piada é muito lento. Ou ele escolheu o quarto do 123º andar para ver (e foi de escada).
Ah sim, a distância é desprezível. Diga-se de passagem, o risco de ser preso também não existe. Afinal, o sujeito praticamente roubou o gringo e, por pura sorte, não foi descoberto. O risco é uma variável importante na economia, não é?
Além disso, vamos lá, não existe mercado nesta cidade. Se existisse, alguém seria credor de tantas dívidas. Em outras palavras, a ganância empresarial já teria levado alguém a criar uma financeira. Ou um banco.
Pois bem, a piada fecha com uma conclusão incorreta. A circulação de dinheiro nem sempre é sinônimo de estabilidade econômica, desenvolvimento e carnaval. Em períodos de hiperinflação, a moeda circula um bocado e, justamente, circula porque há uma crise inflacionária.
Vamos rever a história, na versão Tire a mão da minha linguiça:
Maio de 2009, numa cidade litorânea do RS, muito frio e mar agitado, a cidade parece deserta…
Os habitantes, endividados e vivendo às custas de crédito, trabalham, reajustam seus investimentos, e tentam renegociar suas dívidas com os bancos. Infelizmente, o governo tem aumentado a carga tributária para compensar seus gastos em período de eleição.
Por sorte, chega um viajante rico e entra num pequeno hotel. Ele saca uma nota de R$ 100,00, põe no balcão e pede para ver um quarto. Volta e diz que fica feliz com a honestidade do gerente, que é “uma virtude cada vez mais rara no Brasil” etc, e aceita pagar pela estadia.
O gerente, feliz da vida, sai correndo com a nota de R$100,00 e vai até o açougue pagar suas dívidas com o açougueiro. Este pega a nota e vai até um criador de suínos a quem deve e paga tudo. O criador, por sua vez, pega também a nota e corre ao veterinário para liquidar sua dívida. O veterinário, com a nota em mãos, vai até a zona pagar o que devia a uma prostituta (em tempos de crise, essa classe também trabalha a crédito). Infelizmente, a prostituta trabalha ilegalmente. Não tem carteira assinada e não pode obter empréstimos no banco da cidade para melhorar de vida. O governo diz preocupar-se com ela, mas não lhe dá crédito, só palestras sobre as drogas, o álcool, etc. Afinal, as eleições se aproximam…
Então, a prostituta pega o dinheiro, paga o suborno ao guarda municipal – aquele que promete manter a lei e a ordem, mas sabe como é… – que corre em direção ao hotel, ao qual, às vezes, levava algumas prostitutas. Como nem sempre sua ameaça de não pagar funcionava com o dono do hotel, ele resolve pagar parte de sua dívida com os R$ 100,00.
O dono do hotel, por sua vez, fica bastante feliz. Embora a vida não seja fácil, ele recuperou uma parte da dívida que tinha com o corrupto oficial sem recorrer à violência ou à contratação de pistoleiros. Além disso, por ser honesto, foi recompensado com mais um cliente. Com os R$ 200,00 em mãos, vai ao banco e paga parte do empréstimo que tomou para a ampliação do hotel. Um dia, se os negócios melhorarem, poderá até empregar a prostituta como uma passadeira, dentro da lei.
O banqueiro, com este acréscimo, resolve finalmente abrir nova linha de crédito para pecuaristas locais.
Moral da história: quando existe honestidade e comércio, a sociedade prospera.
(Publicado em Gustibus e em OrdemLivre.org)
5 Comments