A turbulência financeira recente tem como protagonistas os suspeitos de sempre, os “hedge funds” (HFs). Esses personagens se tornaram conhecidos em 1998 por conta de uma grande crise financeira internacional, erroneamente lembrada como a Crise da Rússia. Pobre Rússia. A crise de hoje, cuja extensão ninguém sabe qual será, talvez fique conhecida como a das “hipotecas de qualidade inferior” (“subprime mortgages”), o que, talvez, também não seja próprio.
A Rússia não evaporou, como ocorreu com o LTCM, talvez o mais encantador de todos os HFs, e que quase arrastou consigo uma dúzia de bancos internacionais de grande porte. Algo parecido se passa com as hipotecas inferiores nos EUA: as pessoas continuam pagando, as taxas são altas, há inadimplência, mas o problema não é tanto aí, mas com o financiamento para carregar esses ativos. Tradicionalmente, os financiamentos habitacionais nos EUA usam securitizações e outras formas de se transferir a titularidade e o risco dos financiamentos para o mercado de capitais com garantias diversas, inclusive do governo, o que permite o acesso a dinheiro longo e barato.
O mercado imobiliário americano tem lá os seus ciclos; vinha muito bem por bastante tempo e começou a enfraquecer. Caíram os preços dos imóveis, as novas construções, tudo dentro da normalidade do ciclo econômico. Foi quando se percebeu a presença de HFs nos segmentos de maior risco dentro do mercado imobiliário, as tais hipotecas inferiores. É quando os problemas ficam sérios.
O episódio da crise do LTCM em 1998 deixou lições. Os principais bancos centrais adotaram uma postura filosófica e regulatória com relação aos HFs que pode ser resumida em dois princípios: o primeiro, o de que os HFs não são assunto de banco central, inclusive por que se se resolvesse que teria de ser, haveria uma migração maciça dessas instituições para jurisdições “off shore” e a regulação resultaria inútil.
Isso é muito diferente no Brasil, tenha-se claro, pois o animal local mais parecido com HFs americanos, os nossos “fundos multimercados”, são fortemente regulados. Fecha parênteses.
O segundo princípio, e muito sensato, poderia ser resumido pela seguinte máxima: “do chão não passa”. Na essência, isso quer dizer que se um bando de financistas brilhantes resolve juntar muito dinheiro de pessoas ricas e inteligentes para investir em ativos com muito risco, o banco central e o cidadão comum não têm nada com isso, pois todos são ricos, espertos e têm o direito constitucional de perder todo o dinheiro que bem entenderem. Do chão não passa, não há “terceiros” envolvidos.
A preocupação dos BCs passou a ser, portanto, a de limitar e regular a relação entre bancos e HFs, pois foi aí que deu problema em 1998. A palavra chave nesse terreno é “alavancagem”, ou seja, dinheiro emprestado pelos bancos para os HFs, direta ou indiretamente. É claro que há vários tons de cinza, em muitos casos um banco “patrocina” um HF, indica para clientes, empresta dinheiro para os clientes investirem, sem que empreste diretamente ao HF. São inúmeras as possibilidades, é difícil para o regulador capturar todas elas.
Quando as coisas vão bem, vale a Lei de Tolstoi: as famílias felizes todas se parecem. Quando vão mal, o problema é violar o princípio referente ao chão, acima referido. Um fundo com $100 de cotistas, e $400 de dinheiro emprestado, pode comprar $500 de ativos, que se, por desventura, passaram a valer $200, o patrimônio fica negativo e, em tese, os clientes não apenas perderam tudo, como tem que botar mais algum para pagar o banco que lhes recomendou o fundo. É duro. Se os ativos são bons, e a baixa de preço é temporária, a ação mais recomendada é a mais difícil: não fazer nada. Para isso será preciso liquidez para honrar resgates e estender os empréstimos. Parece ser o que os bancos estão fazendo, com o apoio de seus bancos centrais.
A fofocaria é imensa, como está sendo o trabalho de “liquidar” os HFs quebrados, transferindo os ativos para quem tem “bala” para carrega-los por um bom tempo. As janelas de regate de HFs são, em geral, semestrais, de modo que os açougues vão funcionar durante alguns meses.
(Época – 13/08/2007)
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