Na 20a edição do Fórum da Liberdade realizado em Porto Alegre dias 16 e 17 abril passados, cujo tema foi Propriedade e Desenvolvimento, fiquei um pouco apreensivo pela presença de alguns palestrantes como Frei Betto, consultor do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e com Miguel Rossetto, ex-Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário (MDA) no Governo Lula. Achei que o caráter do Fórum tinha sido corrompido em nome do “politicamente correto”, mas felizmente me enganei…
Sem querer desmerecer os demais participantes e outros painéis interessantes, quero discorrer algumas letras sobre as contribuições destes dois senhores.
Frei Betto participou de um painel sobre “As Limitações Legais e Constitucionais ao Direito de Propriedade” com os juristas Ives Granda Martins e Manoel Gonçalves Ferreira Filho no segundo dia de fórum. Na verdade, as colocações de Betto fugiram por completo do tema. O tom de sua análise beirou a “auto-ajuda” ao advogar um sistema pautado na solidariedade. Mas, o que significa construir um “sistema solidário”? Além do que não fica claro como a solidariedade seria organizada, se com ou sem propriedade privada?
Tenho lido gente a qual me oponho. Desde que haja conteúdo no que dizem, sempre vale a pena. Não há, no entanto, nenhum mérito em quem escapa pela tangente de um debate com arremedos de metáforas. Exceto se considerarmos a incrível capacidade de ludibriar. Solidariedade, diferentemente, do que poderia pensar Betto não pressupõe uma limitação ao direito de propriedade. Adam Smith já dizia que o livre-mercado não depende, necessariamente, de um egoísmo como ética em todas as instâncias da vida de um indivíduo (1). É plenamente possível (e desejável) que as pessoas se empenhem em atividades filantrópicas, sem interferência estatal. E seria melhor ainda por que não se correria o risco de desvios, ou de institucionalização daquilo que a sociedade pode considerar necessário agora e não mais em outra conjuntura.
Segundo Betto, o problema residiria em nos “excessos”. Para ele, o excesso de governo é o totalitarismo; o excesso de sociedade civil é o anarquismo; e o excesso de empresários é o corporativismo. Mal teve tempo de terminar, o moderador lhe colocou uma posição contrária como ensejo para uma questão, onde o excesso de governo seria sim, o totalitarismo, mas o excesso de sociedade significa pluralidade e o excesso de empreendedorismo, capitalismo. Como esta palavra deve lhe causar alguma urticária, se limitou a dizer que “deveríamos nos envergonhar (sic) do capitalismo”. Talvez a ética católica de Betto seja mais forte do que imaginamos… Embora esta não fosse passível de se aplicar aos leigos, para o direito canônico um bom religioso não poderia ser comerciante (2).
Ferreira Filho ainda contemplou que se fugiu completamente do tema “propriedade privada” e que o corporativismo vem da Idade Média. Acho importante observar isto, para que não se relacione, indevidamente, um fenômeno contemporâneo do capitalismo com sua própria gênese. O que tem menos a ver ainda com sua forma liberal.
Bem, o show viria mais tarde, dado por Denis Rosenfield, professor de filosofia da UFRGS, ao debater com o ex-ministro Rossetto no painel sobre reforma agrária. Como já seria de se esperar, Rossetto fez uma defesa apaixonada desta política alegando ser mais justa a conseqüente distribuição de terras e seus efeitos, como manter jovens no campo evitando a dispersão na cidade e sua falta de oportunidades. Acho incrível como pode se distorcer tanto o foco de um debate. Pois, até onde sei, a questão era se a reforma agrária implicou ou não em maior produtividade. Se sim, empregos seriam gerados, se não, valeria mais a pena investir na formação de empregos urbanos.
Mas, o que Rosenfield frisou foi que o MST, atualmente, não discute mais a questão se uma propriedade é ou não produtiva e sim, a “função social da propriedade”, conceito vago este que, a bem da verdade, sabemos que pode ser interpretado conforme as conveniências do próprio MST. Para esta sigla, simplesmente não importa mais se uma fazenda é ou não produtiva. Não haveria mais propriedades improdutivas no Sul e Sudeste brasileiros, situação discrepante de outras regiões. O caso emblemático da, altamente produtiva, Fazenda Coqueiros no norte do Rio Grande do Sul, serviu até como motivo para uma instalação nos stands do fórum onde havia o resto das ferragens de um caminhão queimado pela “movimento social”. A militância dos sem-terra utilizou o próprio combustível para queima-lo. Também fica difícil entender o conceito de função social da propriedade quando quem diz lutar por ele queima 130 hectares de uma fazenda. Aplicando a metodologia de Betto, talvez seja por “solidariedade aos piromaníacos”.
Prosseguindo na apresentação, Rosenfield mostrou alguns slides em que, além de garrafas de cachaça jogadas no pasto pelos invasores, havia um galpão em chamas, com madeira pronta para comercialização, que mais lembravam as ações da Ku Klux Klan no sul dos EUA. E, para mim, o mais chocante: um terneiro, cujos tendões nas patas foram cortados. Motivos para estes atos? Talvez, o caminhão represente o ciclo do capital que precisa de um mínimo de agilidade na distribuição de produtos ao mercado; o fogo, um purificador do que julgam o símbolo demoníaco no depósito, um fruto do engenho e empenho daqueles que fazem mais por sua sociedade que qualquer metafórica “função social da propriedade”; a cachaça, a inspiração para os covardes; e, por fim, o animal barbaramente torturado, um aviso da vontade de aplicar sua “justiça revolucionária”. Que explicação pode haver para o terror? O álcool não é, ele apenas ajuda a revelar o que são estes indivíduos.
Uma forma interessante de se entender uma situação social, seja cultural, política ou economicamente falando é se por no lugar de outra pessoa, especialmente quando vinda de uma realidade distante. Este foi o caso de Barun Mitra, pesquisador de políticas públicas de Nova Délhi. Muito estranhou que uma potência agrícola como o Brasil ainda estivesse discutindo a distribuição de terras no meio rural. Sim, parece paradoxal, exceto quando não se enxerga que o que falta não é terra, mas geração de emprego. Obviedades como esta parece nos escapar quando se ouve um Rossetto dizer que o Brasil espantaria um indiano ou francês pelo tamanho de suas propriedades, ao que foi confrontado pelo moderador, com um gráfico que mostrou propriedades médias em outros países, cujo tamanho era muitíssimo maior. A Austrália, por exemplo, me surpreendeu… Mas, pensando um pouco mais, fica fácil entender por que tamanha diferença: um país quase do tamanho do nosso, com uma população inferior a Grande São Paulo, só poderia ter uma baixíssima densidade demográfica e, logo abundância de terras. Rossetto se viu numa “cama de gato”, pois invocou a extensão média das propriedades para, minutos depois, ver sua própria linha de raciocínio voltar contra si próprio! O que lhe restou? Só dizer que média não prova nada, que “média distorce a realidade!” Se antes a propriedade média espantava pelo seu gigantismo, depois ela só distorcia.
Ocorre que esta não é a verdadeira questão e sim que países como a Austrália são altamente urbanizados, não havendo a menor possibilidade de, para se atingir maior grau de desenvolvimento, se questionar a estrutura agrária atual. O emprego em massa está nas cidades, o percentual de agricultores no mundo moderno é cada vez mais baixo. Negar isto pressupõe ingredientes mentais ludditas, pressupõe o atraso, pressupõe o populismo que é o caso do ex-ministro.
Dados concretos derrubam metáforas, pois afinal o que significa enfatizar a “função social da propriedade”, como se a própria propriedade já não fosse socialmente funcional?
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Se os organizadores do fórum me permitem uma pequena crítica, só senti falta, dentre tantas formas de analisar a propriedade privada, de alguma consideração sobre a propriedade urbana. Após a Lei 10.257/2001 conhecida como “Estatuto da Cidade”, as cidades com mais de vinte mil habitantes são obrigadas a formarem seus Planos Diretores Participativos. E não podemos nos esquecer de que os mesmos subentendem que deve haver uma função social da propriedade urbana. Em tempos de Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), seria bom que fosse dado o alerta…
[1] Disaster relief: What would Adam Smith do? Sobre o que seria a posição de Smith em relação ao apoio às vítimas da tsunami asiática no Índico em 2004. E ainda sobre o cataclismo, conferir o “descaso” dos países ricos em relação aos atingidos: Tsunami aid: Who’s giving what.
[2] “(…) Decididamente os comerciantes ocupam grande espaço na Idade Média desejosa de mutação. Apesar da Igreja. Sejamos justos: o preconceito anticomercial não é unicamente dela. Vai ao encontro de uma inveterada desconfiança popular contra o intermediário, que vende o que não foi produzido por ele mesmo: ‘Capelista que vende de tudo nada faz’, diz o provérbio. A Igreja não se priva de ir ainda mais longe.
“Ela decreta a proibição da atividade ‘comercial’ a seus próprios membros. O cânone 142 do Código de Direito Canônico é drástico: ‘É proibido aos clérigos exercer, para si ou para outrem, atividade nos negócios ou no comércio, seja em seu benefício, seja em benefício de terceiros’.
“A proibição não tem em mira os leigos, mas predomina a idéia de que não se pode ser, ao mesmo tempo, comerciante e bom cristão: ‘Raramente, talvez nunca, um comerciante pode agradar a Deus’” (Alain Peyrefitte. A Sociedade de Confiança: ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento. Rio de Janeiro : Topbooks : IL, 1999, p.90. Grifos meus).
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