Trinta e três mil táxis rodam pela cidade. Para circular, cada amarelinho precisa de uma permissão da prefeitura, cedida em nome do motorista e que, em caso de morte, fica para filhos ou cônjuges. Sem fiscalização e como o município não libera novas autorizações para taxistas há mais de dez anos, a proibição de se vender autonomias, na prática, alimenta um mercado negro, cada vez mais aquecido. Lojas especializadas em serviços para táxis, além de anúncios na internet, oferecem até promoções como a venda casada: o cliente pode adquirir um “combo” — o veículo para circular como táxi e a autonomia juntos — por valores a partir de R$ 210 mil, que podem alcançar R$ 265 mil, dependendo do modelo do carro, se é novo ou usado.
— Se quiser só a autonomia, tenho uma aqui, oportunidade única. Está saindo a R$ 170 mil, mas dá pra fazer por R$ 165 mil — explica por telefone um vendedor da Loja do Alemão, no número 191 da Rua Padre Manoel da Nóbrega, em Piedade, conhecida como a “rua dos taxímetros”.
Na Manoel da Nóbrega, há dezenas de lojas similares, muitas delas com pelo menos 20 anos de existência, que vendem de taxímetro a bigorrilho — a lanterna da parte superior do veículo, que indica se ele está livre ou ocupado. Os estabelecimentos maiores ganharam a confiança dos taxistas, pois neles há um grande leque de serviços oferecidos, inclusive despachantes que aceleram todo o processo burocrático na Secretaria municipal de Transportes. O problema é a venda de autonomias — inclusive com propaganda no jornal da categoria, o “Taxinforme” —, o que não poderia ser feito. Mas, em meio a uma discussão sobre a qualidade do serviço prestado por táxis na cidade e a regulamentação ou não de alternativas como o Uber, nada acontece com esses comerciantes que desrespeitam a lei.
Documentos de doação fictícia
A prefeitura aceita a prática, tanto que tem os registros do número de vezes em que houve transferência de autonomia entre motoristas, como se ignorasse que as transações envolvem pagamento pela documentação. De acordo com a Secretaria de Transportes, desde janeiro deste ano foram registradas 1.806 transferências, sendo que apenas 146 aconteceram por motivo de hereditariedade, como prevê a lei 5.492/12.
Como é possível a secretaria aceitar as transferências, já que se trata de prática proibida? Simples. Vendedor e comprador assinam uma peça de ficção: um documento, elaborado nas próprias lojas e registrado em cartório, alegando tratar-se de uma doação. A secretaria informou que a transferência de autonomia é permitida. Contudo, caso um taxista seja flagrado vendendo a licença, informou o órgão, poderá ter a autorização cassada.
Nas lojas espalhadas principalmente pelo subúrbio da cidade, esse mercado paralelo oferece ainda sistemas de segurança, como rastreadores para os veículos, e até motoristas auxiliares, outra mazela do serviço: o dono da autonomia “emprega” um taxista, que lhe paga uma diária para trabalhar.
— Nosso serviço é único — diz um vendedor da Loja do Tunico, em Piedade. — Instalamos um rastreador no carro e conseguimos um motorista auxiliar. Se o automóvel for parar na favela, um policial vai até lá na hora. Você não precisa nem conhecer o auxiliar, ele vai depositar todo mês o dinheiro das diárias. Se comprar uma Spin, por exemplo, pode cobrar R$ 240 de diária que ele paga sorrindo
Pelos serviços de “segurança” e pelo contrato com um motorista auxiliar, cobra-se uma “taxa de manutenção” de R$ 500 mensais.
E se o interessado quiser comprar mais de uma autonomia? Pode, contanto que a segunda seja registrada no nome de outra pessoa.
— Eu mesmo tenho quatro, mas só uma no meu nome. Dá para ganhar pelo menos R$ 3 mil por mês com isso. Vale mais do que investir em imóvel — afirma o mesmo funcionário.
Procurado para esclarecer as informações prestadas a repórteres que ligaram para o estabelecimento, o proprietário da Loja do Tunico, que se identificou apenas como Carlos, negou fazer esse tipo de negócio.
— Aqui a gente compra antigos táxis, carros que saem do mercado. Fazemos o serviço de despachante. Trabalhamos com permuta e transferência de autonomia de pai para filho — garante ele.
Ali perto, na Avenida Dom Hélder Câmara 8.191, um vendedor da JSN Veículos diz que a empresa parou de trabalhar com venda de autonomias.
— Está começando a dar problema — alega, sem dar detalhes.
No número 971 da Manoel da Nóbrega, um funcionário da empresa Agility estava começando a apresentar as autonomias que tinha a oferecer quando um colega seu, desconfiado, chamou-o para conversar em outra sala. Minutos depois, o vendedor voltou com um novo discurso:
— Na verdade, eu me enganei. Não vendemos autonomia. Só alugamos.
Embora a lei 5.492 tenha proibido a criação de empresas que alugam táxis no Rio, 1.700 autonomias continuam sob posse de 15 companhias locatárias. Cada motorista auxiliar paga de R$ 140 a R$ 250 por diária.
— Temos que trabalhar 12, 13 horas por dia para conseguir ganhar entre R$ 300 e R$ 400. Mas várias vezes não consegui pagar o valor da diária. É uma exploração, pois ainda temos que pagar o combustível — diz um auxiliar, que pede anonimato.
A Secretaria de Transportes informou que, de janeiro a julho deste ano, 3.508 táxis foram vistoriados em ações de fiscalização, especialmente nos aeroportos, rodoviária e shoppings. Com base no Código Disciplinar dos Táxis, foram aplicadas 4.331 punições de janeiro a junho, somando R$ 978.952,46. Nesse período, 568 veículos foram lacrados em razão de irregularidades, principalmente por apólice de seguro fora de vigência, vistoria anual obrigatória vencida e falta de certificado de dedetização. Com relação ao mercado negro das autonomias, nada foi feito. Procurados, os proprietários das lojas do Alemão, JSN Veículos e Agility Veículos não foram localizados.
Projeto cria brecha para mais táxis no Rio
O prefeito Eduardo Paes tem até o dia 29 deste mês para decidir se sanciona ou veta o projeto de lei, aprovado em agosto pela Câmara, que abre a possibilidade de aumentar a frota de táxis na cidade e cria restrições ao Uber. A proposta determina que apenas taxistas podem trabalhar com passageiros em veículos de passeio e estabelece multas para quem presta o serviço sem licença, como no caso dos motoristas do aplicativo.
Uma das emendas fixa a proporção de um táxi para cada 193 habitantes, enquanto o Plano Diretor estabelece um carro para 700 pessoas, sem a distribuição de novas licenças até que essa relação seja alcançada. Se considerada uma estimativa do Instituto Pereira Passos para a população em 2020 (6.661.359 habitantes), a frota de táxis no Rio poderia chegar a 34.514 veículos, 6,7% a mais em relação aos dias de hoje.
O projeto motivou um contra-ataque do Uber, que pediu por e-mail aos clientes cadastrados que compartilhem a hashtag “vetapaes” nas redes sociais.
Fonte: O Globo.
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