O acaso e a insolência de caráter retiraram do anonimato um modesto fazendeiro paulista, crismando-o como pioneiro da revolução estética do modernismo. Ao conhecer Monteiro Lobato, pois é dele que se trata, aprende-se que o papel da literatura, ou da arte, consiste em descobrir no meio em que se vive, embora inóspito, a solução para os males que nos atormentam.
Comecemos por relê-lo. Logo se verá que sua obra se organiza em torno de um questionamento central: o país e sua época. Da osmose dessa dupla procedência resulta seu engajamento social e político: contista, Lobato cultivava um gênero muito antigo e muito moderno, com uma fulgurante e conceituosa apropriação da realidade.
Não nos esqueça que no início do século XX o conto já se enxertava no tronco do romance. Sem derivar para o meramente publicitário, o gênero buscava inspiração no cinema, nas técnicas de corte e de montagem, na fragmentação dos versos de um Neruda, na desconstrução (ainda em curso), nas artes plásticas (em que Picasso pontifica na encenação do desastre de Guernica), tanto como no grotesco, no traço da caricatura, seja nos fatos do dia seja na crítica do poder.
Jornalista, editor, crítico de pintura, sociólogo e antropólogo, militante político, situado no seu tempo e no seu meio, o criador do Jeca Tatu é também autor de páginas polêmicas, de interesse nacional, e de literatura infantil (amplamente divulgada na “nossa América”), e de três livros – Urupês, Cidades mortas, Negrinha – cujo sarcasmo até hoje instrui e constrange.
Em tão breves linhas, vê-se que sua vida e sua obra atestam que a palavra jamais foi para ele o domínio do precário.
Passemos ao nosso tema.
Tão velho quanto a crença no paraíso terrestre, o mito da Idade de Ouro gozaria de alto prestígio após a difusão, por Pedro Mártir de Anglería, da existência de novas terras: muito mais que data histórica, “o descobrimento das Índias, chamado Novo Mundo [foi] a maior coisa depois da criação do mundo, à exceção da encarnação e morte daquele que o criou” (Francisco López de Gómara, Historia general de las Indias).
À luz da moral do Renascimento, sua política e suas idéias sociais, reinventam-se o mito da Idade de Ouro e a lenda do Bom Bárbaro, herdados da Antiguidade. A teoria do Bom Selvagem não é, apenas, uma tomada de consciência humanista suscitada pelos habitantes das “Índias Ocidentais”. É a resposta dos humanistas do século XVI a algumas das mais antigas aspirações do Ocidente.
A visão utópica e os testemunhos dos cronistas e historiadores reunem pesquisas e provas que acabam por converter em teoria antropológica (e política) o que não passava de mito. Deve-se portanto ao Renascimento a reelaboração do sonho edênico da uma sociedade perfeita e da felicidade sobre a terra.
Montaigne declara nos Ensaios que “nada há de bárbaro nem de selvagem entre os canibais da França Antártica [..]. Ali reina sempre a perfeita religião e a perfeita correção, perfeito e completo uso de todas as coisas” (Des cannibales, 1580). Oito anos após, Juan Luis de Molina inteira-se da inocência do autóctone brasileiro que, a exemplo de Adão e Eva, vivia nu e livre. Toma-o, então, para modelo do seu estudo sobre o livre arbítrio, A concordia do livre arbítrio. Refaz-se, com o selo da época, a efígie do bom bárbaro.
Mas é nas águas do iluminismo que o bom selvagem se converte no mais convincente porta-voz da propaganda política, argumento vivo contra a instituição da propriedade privada. Os mestres do setecentos nele vêem o ser de exceção, infenso às mesquinharias da corte, às veleidades da civilização e aos constrangimentos da cultura: é figura emblemática nas polêmicas entre fé e razão, fanatismo e tolerância. O verdor da sua liberdade e a ausência de censura – sem fé nem lei nem rei – o haviam preservado, aos olhos detratores do gênero humano, das incoerências da ordem pré-estabelecida, da consciência da hierarquia e do temor religioso. Na tensão entre o ideal e a realidade, é da sua perspectiva que misantropos e individualistas julgam o Velho Mundo e o Antigo Regime.
Em sua defesa, Rousseau postula metafisicamente que “a natureza fez boas todas as coisas. Foi o homem que se intrometeu e as tornou diabólicas”. O mito por fundamento, sua teoria endossa uma das crenças mais nocivas ao pensamento universal. E soma-se a ela o carisma do índio nobre, belo e perfeito. Travestidos de bom selvagem pelos românticos, os falsos Natchez, criados por Chateaubriand, tiveram nos Brasil dignas réplicas: Juca Pirama, Marabá, Peri, Iracema …
E então? Que real benefício legaram esses índios de opereta ao nosso indígena, tirante o nacionalismo factício e meia-dúzia de heróis, também eles exóticos?
Nenhum. Não lhe legaram senão preconceitos. Razões puramente naturais, no entanto inexoráveis, lograram preservar o mito. Apesar de defensores irredutíveis das mais drásticas reformas da história moderna, Darwin, Freud e Marx esqueceram-se de condenar o postulado romântico da inocência e da bondade natural do homem. Um pouco de atenção nos permitirá descobri-lo, intacto, nos perfis exaltantes do caboclo, do vaqueiro, do tropeiro, do huaso, do peón e do peão, do cowboy, dos bad good men, assim como em funções de prestígio e de comando, exercidas por gente simples, simplória e iletrada.
Tópico de prerrogativa humana, urge denunciar o que se esconde atrás de sua imagem: o privilégio vitalício das virtudes naturais. Consagra-se a preeminência do inato sobre o adquirido. A fascinação pelo que é tosco, rude, agreste conduz à formação de arquétipos que se repetem, em série, numa tribo onde o insensato e o ingênuo, o simples e o simplório, o rústico e o petulante, o agreste e o arrivista vivem ao abrigo de toda censura.
Estamos diante de um clichê que urge denunciar. São, em parte, tenazes e destemidos: Pancho Vila, el macho, Lincoln, o lenhador, Getúlio, “o pai dos pobres”, Walesa e Lula, os metalo-sindicalistas, Chávez, el comandante en su laberinto, Morales, el cocalero. Por outro lado, Perón, caudillo argentino, deve sua nomeada a Evita, “la mamá de los descamisados” cuja ascensão obedece aos mesmos princípios da criação do Bom Selvagem.
Primus inter pares no cenário da República, o deputado Severino porta sobrenome de casa patrícia italiana, Cavalcanti, e ocupou, até 21 de setembro de 2005, o posto de presidente da Câmara Federal: fiasco que só se explica à luz do mito do sertanejo forte, cândido e veraz, contaminado, no caso, pelos vícios da sociedade…
O mesmo mito justifica a teoria do negro infeliz, alma pura, retratado em A cabana do pai Tomás, no papel protagonista de Tom, e, na ópera negra Porgy and Bess, no papel de Porgy. E também se explicam, à sua luz, as injúrias da comunidade negra a Paul Robinson e a Harry Bellafonte, de cumplicidade com os brancos, ainda que não ousasse negar-lhes talento.
O negrismo exótico, ao gosto de Blaise Cendrars, o afro-antilhanismo de Luis Palés Matos, branco, e do mestiço Nicolás Guillén, como os motivos das criações de Villa-Lobos, Heckel Tavares e Waldemar Henrique, compositores brancos, emprestariam ao tema nova roupagem: ao som dos ritmos quentes do calipso, da rumba, dos sones e dos pontos rituais do candomblé.
Ao tornar-se produtores de celebridades, o futebol e a mídia renovam a cada Copa do Mundo e a cada estação esportiva a iconografia nacional. Já tivemos os anos Ademar da Guia, os anos Didi, o da “folha seca”, os anos Garrincha, “alegria do povo” e o século de Pelé.
A literatura empenhou-se em oferecer-nos, desde sua sagração romântica, um rico repertório desses heróis: na ficção dos séculos XIX e XX, um Pedro Barqueiro (Afonso Arinos, Pelo sertão), o mestiço Firmino (Ferreira de Castro, A selva), o bravo Riobaldo (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas) etc.
Essa família, cada dia mais numerosa, despertou, em Monteiro Lobato, uma justa reflexão: “Esses sertanejos heróicos, fortes e generosos, evolução literária dos índios plutarquianos de Alencar, essa camponesa rebelde, face de pêssego maduro, pés ligeiros e pele cheirosa, nada mais são que licenças bucólicas de poetas que nunca deixaram a cidade grande”. (Mr. Slang e o Brasil).
Num preito a Lobato, condenemos à morte Peri e sua descendência. Quem o sucederá ?
Jeca Tatu, é claro. “O parasita da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argus o é aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas […] espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças” ( “Velha praga”, Urupês).
Passa-se, portanto, do exotismo do nobre índio ao perfil grotesco do caboclo brasileiro. Vale dizer, da ficção romântica à realidade, crua e cruel. Tal o que ocorreu na literatura hispano-americana, quando o indigenismo substituiu o indianismo romântico. O culto aos bastardos da sociedade, expresso por George Sand nos seus romances sociais, importados, mais tarde, pela literatura russa, chegava, enfim, à nossa América. Só então, os escritores se aplicam em demonstrar o que Bertrand Russell chamava “ a virtude superior dos oprimidos” (Ensaios impopulares).
Não fez outra coisa o nosso Rui Barbosa: numa referência dramática ao Jeca Tatu, mostrou como vivia, no abandono e na miséria, o caboclo brasileiro. Situados na sua circunstância – habitat, etnia, condição política, língua, costumes – o indígena e o caboclo suscitam conceitos e teorias que eludem o indianismo romântico sem contudo anular as relações do mito com a consciência.
A ficção do Nordeste e da Amazônia, contestatória, também bradou por justiça e inscreve-se, em consequência, no quadro do engajamento da época. Leiam-se Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queirós, Jorge Amado. Seus romances resgatam, dentro da perspectiva regionalista, os traços culturais dos excluídos.
Mas atenção! Tudo isso se fizera antes, no retrato do “ parasita da terra”, assinado por Lobato: a ausência de higiene, a penúria, o cardápio mesquinho, as carências alimentares, a dependência política, a ignorância, a preguiça doentia, o fatalismo …
É a Lobato, sim, que se deve distinguir, segundo Wilson Martins, com o título de pioneiro do modernismo. Oswald de Andrade nele reconhece “o Gandhi do modernismo”, a verdadeira vocação patriótica da vanguarda literária do Brasil.
Na sua forma extrema, a literatura engajada acabou por conduzir à admiração do indivíduo que a sociedade despreza e se recusa a assimilar sem falsas filantropias. Isto é, o indígena – espinho cravado na carne da América; o caboclo – responsável pelo atraso nacional; o mestiço duplo – homem de duas faces e duas almas, réu no processo que lhe move a nacionalidade.
Esse mesmo fenômeno, característico do comportamento romântico, estaria presente no proletarismo. A adoração do proletariado seguiu-se à voga das intrigas romanescas sobre a vida dos operários. Expressou-o muito bem Arthur Koestler: “A adoração do proletariado parece, à primeira vista, fenômeno marxista; mas é simplesmente uma nova variedade dos cultos românticos do pastor, do camponês, do nobre selvagem, já conhecidos no passado. O que não impediu que os escritores comunistas da década de 30 sentissem pelos operários de uma fábrica de automóveis o mesmo tipo de emoção que Proust sentia diante de suas duquesas” (A flecha no azul, 1953).
À encruzilhada das grandes mudanças do pensamento no século XX, a criação de Jeca Tatu não se esgota numa síntese de alguns dos clichês indianistas. Ao desvelar a alma do anti-herói, o criador descobriu-lhe virtudes desconhecidas. Sem teorizar em torno da experiência literária, “de espricança pouca”, Lobato refere, com humor, ao amigo Godofredo: “Virei casaca. Estou convencido de que o Jeca Tatu é a única coisa que presta neste país”.
Verdade. Jeca Tatu, segunda versão, fez mais pelo caboclo brasileiro que seu alter ego, de “Velha praga”. Do caboclo pálido e ignorante, “preguiçoso, bêbado e, além de bêbado, idiota”, Lobato fez um novo homem. E… de si mesmo, um novo Pigmalião.
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