Autor Convidado: Mauro Godoy Prudente
“Pode-se dizer que, de certo modo, as leis [para os pobres] criam os pobres que mantém”. (Thomas Malthus, Princípio da População) Thomas Malthus parece compartilhar do destino daqueles pensadores que ousaram, com suas idéias, afrontar o establishment intelectual em que viveram. Para ficar apenas com dois exemplos importantes, Friedrich Nietzsche e Vilfredo Pareto também tiveram suas idéias fortemente contestadas pelos seus opositores. Este último, intelectual com uma agudeza de espírito pouco vista em seus pares, até hoje tem suas reflexões em sociologia política praticamente desconhecidas dos brasileiros. Malthus atribuiu para si a tarefa de enfrentar o otimismo utópico dos pensadores sociais herdeiros do racionalismo iluminista. William Godwin e Condorcet, cujo nome completo era Jean-Antoine-Nicolas Caritat, Marquês de Condorcet, são alguns desses pensadores que, herdeiros da Aufkärung, têm suas idéias submetidas à crítica no Ensaio sobre a População. Segundo Malthus, tanto Condorcet quanto Godwin atribuíam de modo simplista as desigualdades sociais e suas conseqüências – fome, miséria, ignorância -, exclusivamente às instituições humanas. Herdeiros intelectuais de Rousseau e predecessores do pensamento socialista posterior, assim como seu mestre, viam na propriedade privada a fonte de todos os males existentes na sociedade. Como assinala Paul Johnson, em sua obra Os Intelectuais, Rousseau acreditava que os indivíduos são dotados de um senso comunitário que lhes é inato, mas a competição no mundo econômico, inerente ao Capitalismo, o destrói. Além disso – ainda segundo Rousseau -, essa mesma competição estimula as características mais perversas dos homens e, dentre elas, destaca-se o desejo de explorar os seus semelhantes. O Discurso Sobre a Origem da Desigualdade, escrito em 1755, influenciou as gerações posteriores de pensadores sociais europeus e inspirou diretamente Karl Marx, que fez da propriedade privada dos meios de produção a pièce de resistence de toda a sua crítica ao sistema econômico capitalista. Malthus talvez tenha sido o primeiro grande crítico do voluntarismo em suas mais variadas espécies; entendendo-se como voluntaristas, neste contexto, todas as tentativas de produzir mudanças nas instituições humanas em geral – econômicas, sociais, políticas – pela ação consciente de indivíduos ou grupos, auto-referidos “reformadores sociais”. Se o século XIX foi marcado pelos experimentos sociais dos intitulados, pela crítica mordaz de Karl Marx, “socialistas utópicos”, o século XX foi o palco da “engenharia social”. O Nazismo e o Comunismo, este último em suas versões Estalinista e Maoísta (dentre outras), submeteram povos inteiros ao terror totalitário, em nome de uma ideologia quiliasta que lhes prometia o paraíso neste mundo. Seu resultado foi, sem exceções, um saldo trágico o suficiente para desencorajar (esperamos que para sempre) novas tentativas desse gênero. Uma das grandes lições da história consiste no fato de que as instituições humanas não surgem ex nihilo, pela vontade de algum ator “iluminado”, individual ou coletivo (partido político). As instituições são sempre uma resposta adaptativa das coletividades humanas às pressões seletivas em geral: do meio ambiente, das relações interindividuais, da concorrência com as demais coletividades (cujo exemplo maior é a guerra). As instituições, pelo fato de estarem submetidas ao contínuo teste do tempo, possuem uma racionalidade “superior” às decisões de indivíduos isolados, por mais “lógicas” que estas últimas possam parecer à primeira vista. O mesmo princípio pode ser aplicado, de modo análogo, ao terreno das condutas com finalidade moral. É o Éthos, ou os Costumes que qualificam os atos humanos com sentido moral, como sendo: “bons”’ ou “maus”; “corretos” ou “incorretos”, “justos” ou “injustos”. Assim, para ser virtuoso do ponto de vista moral, é necessário agir de acordo com os costumes. Immanuel Kant foi um opositor da filosofia moral tradicional baseada na doutrina das virtudes. Segundo Kant, as virtudes morais (coragem, temperança) e intelectuais (prudência), poderiam, em determinadas circunstâncias, ser utilizadas para fins maus. Diante disso, procurou estabelecer um novo fundamento para a filosofia moral. Tal como os demais Iluministas, Kant confiava na razão individual e fez dela o centro de sua moralidade, atribuindo aos indivíduos a responsabilidade de legislar em matéria moral. Visava com isso relegar a um segundo plano os Costumes como fonte da ética. A Metafísica dos Costumes é a obra que busca estabelecer este novo fundamento para a filosofia moral. Hegel foi um filósofo contemporâneo de Kant e um crítico feroz do que ele denominava de “pensamento abstrato”. Este último toma os eventos singulares – sociais, econômicos, políticos – em si mesmos, sem estabelecer as suas relações necessárias com a totalidade histórica, da qual são resultantes. O pensamento abstrato, na visão de Hegel, é sempre unilateral e simplificador. Desta perspectiva, Hegel considerava que a doutrina moral kantiana, ao tornar a razão individual o seu centro, transformava-se num formalismo vazio de conteúdo. Ao abandonar os costumes como fundamento da moralidade, essa mesma razão seria incapaz de produzir um critério objetivo que guiasse a ação individual nas circunstâncias concretas. Segundo Hegel, somente os costumes são capazes de produzir um fundamento objetivo para a ação moral. Em sua obra Sobre os Dois Modos de Tratar o Direito natural diz Hegel: “O esforço por uma moralidade própria de cada um é fútil e pela sua própria natureza impossível de alcançar. No que diz respeito à moralidade, a afirmação dos maiores sábios da antigüidade é a única verdadeira – ser moral é viver de acordo com as tradições morais do país em que nascemos”. Na Filosofia do Direito, por sua vez, diz Hegel: “Em uma comunidade ética, é fácil dizer o que o homem deve fazer, quais são as responsabilidades que tem de cumprir para ser virtuoso: basta que ele siga os regulamentos explícitos e conhecidos de sua própria situação”. O Ensaio sobre a População é, portanto, escrito com o espírito de criticar o pensamento abstrato, que se imagina capaz de reformar o mundo a partir da perspectiva de indivíduos ou grupos, sem levar em consideração o lento trabalho da razão coletiva ao longo do tempo, a qual, como vimos acima, consubstancia-se nas instituições existentes. Como assinala Malthus ao criticar o “reformador social” Godwin: “O grande erro em que Godwin labora em toda a sua obra é o de atribuir quase todos os vícios e a miséria que são constatados na sociedade civil às instituições humanas. As regulamentações políticas e a administração instituída da propriedade são, de acordo com ele, as fontes fecundas de todos os males, o foco de todos os crimes que degradam a humanidade”. (segue)
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