O debate sobre a diversidade de opinião nas universidades brasileiras – principalmente nos departamentos de ciências sociais e humanas – ganhou uma nova coloração nos últimos anos. Trata-se hoje de um terreno perigoso para quem almeja a moderação política. O ânimo do debate produziu um discurso belicoso e virulento, e quem quer que procure entrar nele parece estar sempre obrigado a “escolher um lado”. Mas quais são os lados, afinal? O que exatamente está em disputa? Qual é a natureza do problema em questão?
Há muitas teorias correntes sobre a situação política da universidade. Alguns consideram elas dominadas pela balbúrdia, centros de treinamento para militantes comunistas. Outros as consideram difusoras do pensamento crítico, ameaçadas pelo avanço da direita fascista. Entre essas duas posições há uma série de outras mais ou menos ponderadas, mas uma coisa chama a atenção de qualquer um que procure informação sobre o assunto: aparentemente não foi produzido até hoje nenhum estudo científico ou artigo acadêmico que procure abordar as causas e efeitos da polarização e intolerância ideológica na universidade brasileira e sobre como isso afeta a qualidade do ensino superior no nosso país. 1 É curioso, portanto, que tanto ânimo se gere, tantas teorias circulem e tantas soluções se proponham em torno de um problema que sequer começou a ser encarado de frente pela nossa comunidade científica.
Que o problema não tenha sido encarado obviamente não significa que o problema não existe. Pelo contrário: trata-se de mais uma evidência de que algum problema há. Afinal, o que explica que um assunto tão amplamente discutido não tenha motivado nenhum esforço dos nossos cientistas sociais para investigá-lo? Pode haver muitos acadêmicos que não se interessam pelo tema, é verdade, e muitos podem estar compromissados com outros projetos científicos – mas isso não explica totalmente o silêncio da academia. Existe, evidentemente, uma relutância em tratar desse tema. Trata-se de um vespeiro que muitos sabem por bem evitar – e todos sabem que a universidade está cheia de vespeiros desse tipo. Uma pesquisa recente mostrou que alunos universitários nos EUA estão entre as parcelas da população mais dispostas a se autocensurar para evitar represálias sociais.2 Para esses alunos, evitar rótulos e estigmas políticos é muitas vezes mais importante do que tratar abertamente ideias controversas. Bem podíamos nos perguntar se no Brasil a situação é parecida, mas na falta de estudos científicos sobre o nosso contexto local nos resta apenas aquilo que sugerem os inúmeros relatos de perseguição política e censura ideológica registrados em faculdades ao redor do país.
+ Roberto Rachewsky: O que os políticos brasileiros deveriam aprender com os pais fundadores dos EUA
Há, no entanto, aqueles que duvidam que a liberdade de expressão nas universidades esteja em crise.3 Há aqueles que dizem que, sendo um dos papeis da universidade preparar seus alunos para o convívio social, é natural que isso inclua a supressão de discursos socialmente inaceitáveis como o preconceito e a intolerância, e que esse processo de socialização explicaria a propensão dos nossos jovens a se auto-censurarem no meio acadêmico. Trata-se então de uma autocensura benéfica, tal como aquela a que se submete qualquer criança ao amadurecer e aprender que certas coisas simplesmente não se fala na mesa de jantar. Para os proponentes dessa visão, a insatisfação com o que se veio a chamar o “politicamente correto” nada mais é do que uma sociedade relutantemente se acostumando com normas discursivas que finalmente atendem à sensibilidade de parcelas anteriormente marginalizadas da população.
Há, no entanto, motivos para contestar essa visão. 4 Certamente podemos concordar que regras de conduta e normas discursivas devem ser adotadas para acomodar uma sociedade cada vez mais plural – mas isso não significa que todas as condutas e discursos propostos para esse fim são necessariamente benéficas, nem para os alunos em geral e nem para as próprias parcelas marginalizadas da população cujos interesses estariam sendo avançados. Trabalhos recentes na área da psicologia social sugerem que o assalto desenfreado contra discursos supostamente ofensivos pode levar à fragilização psicológica das pessoas que estaríamos tentando proteger. Ao sugerir, por exemplo, que o racismo, machismo e homofobia são sistêmicos, endêmicos e implícitos em uma série cada vez maior de gestos e práticas sociais, poderíamos estar incentivando uma fixação persecutória que prejudica a resiliência psicológica de classes marginalizadas da população. 5 Atenção: isso não significa dizer que o racismo, o machismo e a homofobia não podem se manifestar implicitamente em práticas sociais sutis e não-intencionais – apenas temos que ter em mente que o hábito de interpretar qualquer ação como potencialmente carregada de preconceitos implícitos (ou como “micro-agressões”, como se diz nos EUA) pode, ao invés de combater preconceitos reais, deixar as pessoas menos preparadas para resolver conflitos e lidar com dilemas sociais mais complexos do que parecem à primeira vista. Esses estudos vão ao encontro do senso comum de que quanto mais adotamos o hábito de interpretar as ações cometidas à nossa volta como negativamente motivadas, mais vulneráveis nos tornamos à ansiedade, ao desespero, e a uma rede de relacionamentos fraturados.
Jonathan Haidt e Greg Lukianoff, autores do livro The Coddling of the American Mind, argumentam que esse problema está relacionado a um processo que eles denominam “concept creep”, onde um conceito anteriormente usado para descrever uma série circunscrita de fenômenos tem sua definição progressivamente expandida de modo a incluir significados que não tinha anteriormente. É o que eles demonstram ter acontecido tanto na literatura científica quanto no debate popular com termos como “violência”, “agressão” “trauma” e “segurança”. No começo do século 20, esses conceitos tinham seus significados circunscritos ao domínio do mundo material. “Agressão” era algo intencionalmente cometido, e “segurança” significava proteção no âmbito físico. Ao longo do tempo, no entanto, a definição desses termos se expandiu progressivamente de modo a incluir fenômenos no âmbito emocional e subjetivo. “Trauma”, por exemplo, passaria com o tempo a ser considerado qualquer coisa percebida pelo sujeito como tendo efeitos prejudiciais ao seu bem-estar físico ou emocional. “Agressão” passaria, também, a ser definido de acordo com aquilo que é percebido como agressão pelo sujeito, independentemente das intenções do agressor.
Embora seja indiscutivelmente importante levarmos em conta as experiências subjetivas de pessoas que se sentem ofendidas ou agredidas, é certamente discutível o quão proveitoso seria se tomássemos toda e qualquer reação emocional negativa a um gesto, comentário ou ideia como prova definitiva de agressão, ofensa ou preconceito. Haidt, Luckianoff e diversos outros estudiosos apontam, por exemplo, para os efeitos perversos de um fenômeno recorrente nas universidades americanas, onde mais e mais ideias e discussões são boicotadas e censurados sob a justificativa de que estariam “ameaçando a segurança” dos alunos. Essa justificativa segue um encadeamento lógico: se violência é algo experimentado subjetivamente e certas ideias causam desconforto emocional a certos estudantes, logo essas ideias estariam promovendo a violência entre os estudantes. Aderindo a essa lógica, inúmeras faculdades americanas adotaram nos últimos anos políticas para criar “espaços seguros” [safe spaces] onde alunos estariam protegidos contra discursos que lhes causam desconforto, e muitas criaram aparatos burocráticos que acolhem e investigam denúncias de “micro-agressões”. Graças a esse aparato e seus discursos justificativos, a lista de alunos perseguidos e de professores que tiveram suas carreiras acadêmicas ameaçadas por conta de comentários banais e mal-compreendidos (ou simplesmente por exporem o conteúdo curricular de suas disciplinas) é hoje longa demais para reproduzir aqui. 6 A ideia de que isso pode ter ido longe demais, como era de se esperar, é ela própria tida como algo que gera desconforto para alguns, passível de ser interpretada como micro-agressão e, portanto, casualmente evitada nas declarações oficiais das universidades em questão.
No Brasil não temos a mesma terminologia ou o mesmo aparato institucional que está se desenvolvendo nos EUA em torno desses problemas, mas algo do que acontece por lá certamente haverá de soar familiar a quem acompanha o debate cultural dentro e fora da universidade brasileira hoje em dia. Quem nunca teve a impressão de que nossa sociedade também parece muitas vezes equacionar “sentir-se ofendido” com “ter sido ofendido”? Quem nunca teve a impressão de que uma ideia foi suprimida em um debate sob a alcunha de “discurso de ódio” sem nem que se discutisse apropriadamente o mérito e substância dessa ideia? Quem nunca teve a impressão de que termos como racismo, machismo, homofobia e afins muitas vezes são usados para calar oponentes ao invés de denunciar casos reais de preconceito? Reconhecer isso como um problema não é negar que exista o racismo, o machismo, a homofobia e o discurso de ódio. Pelo contrário: significa preservar o bom combate a esses males. Qualquer um que já ouviu o conto do menino que gritava “lobo” sabe o quanto palavras podem perder sua efetividade quando mal utilizadas e o quanto isso pode nos deixar vulneráveis ao perigo real que nos espreita. O fato de que o preconceito existe e deve ser combatido não nos exime da responsabilidade de denunciá-lo com critérios sensatos e racionais – para o bem da luta pela inclusão e pela tolerância isso deve ser lembrado.
Para além do prejuízo que isso causa às pautas de inclusão e de combate ao preconceito, também temos de nos perguntar o efeito que isso tem na formação intelectual e emocional dos nossos estudantes universitários. Considerar que certos assuntos são moralmente repugnantes ao ponto de serem indiscutíveis significa necessariamente um estreitamento das ideias que são engajadas intelectualmente no âmbito acadêmico. Certamente podemos concordar que certas posições são, de fato, moralmente repugnantes e devem ser combatidas, mas não podemos deixar de levar em conta qual é o modo apropriado de combatê-las. Será que criar barreiras emocionais entre nossos alunos e ideias controversas não teria o efeito óbvio e previsível de tornar esses alunos menos preparados para lidar com essas ideias quando surgirem no debate popular? Será que isso não incentiva reações emotivas e irracionais a pontos de vista que poderiam ser mais adequadamente respondidos com a lógica e evidência empírica? Mais do que engajar nossos alunos no combate a ideias repugnantes, não seria o propósito da formação acadêmica prover a eles os instrumentos para enfrentar essas ideias com discursos logicamente articulados e cientificamente embasados? Qual será a eficácia desse combate quando a vontade não está mais aliada à razão? Como saber, afinal, se suprimir ideias “ofensivas” é mais eficaz do que debatê-las à luz do dia?
Muitos alunos hoje não reconhecem a necessidade de engajar intelectualmente ideias com as quais eles discordam. Muitos consideram que o silenciamento de oponentes ideológicos é um instrumento legítimo para combater ideias controversas. Em 2013, 58% dos alunos universitários entrevistados em uma pesquisa responderam ser preferível estudar em um ambiente onde eles não sejam expostos a ideias ofensivas. 7 Desde então, mais de cem boicotes foram organizados por estudantes nessas faculdades para impedir que palestrantes convidados tivessem uma plataforma para expor suas ideias. Embora no Brasil esses casos ainda não tenham recebido uma abordagem mais cuidadosa por parte da nossa comunidade científica, eles também ocorrem por aqui em número significativo. Para aqueles preocupados em preservar a reputação da universidade como um ambiente onde se promove a liberdade de expressão e o embate racional de ideias, trata-se de um fenômeno que merece mais atenção.
Na discussão sobre o preconceito e a intolerância, a universidade hoje é reconhecida por muitos como uma força do avanço. De fato, pesquisas indicam que quanto mais uma pessoa tem acesso à educação superior, mais tolerantes elas tendem a ficar em relação a fronteiras de classe, gênero, raça, e opção sexual. Essa mesma pesquisa no entanto encontrou outra tendência um pouco menos lisonjeira à nossa comunidade acadêmica: quanto mais educação formal as pessoas recebem, mais tende a diminuir, quando comparado à população em geral, o seu grau de tolerância em relação a fronteiras políticas e ideológicas. (Isso se aplica tanto para pessoas de direita quanto de esquerda, vale notar). 8 Os motivos exatos para essa tendência ainda são difíceis de discernir, principalmente no contexto brasileiro. Como já falamos, simplesmente não há estudos sistemáticos sobre esse assunto sendo realizados pela nossa comunidade científica. Uma coisa no entanto é certa: nossas universidades hoje têm um atraso para tirar no que diz respeito ao estudo da polarização e intolerância política que pode estar sendo cultivada dentro do campus universitário. Apenas começamos a arranhar a superfície desse problema, e muitos outros fatores ainda precisam ser levados em consideração. Nos resta esperar que a comunidade acadêmica atenda ao chamado (cada vez mais urgente) por um tratamento crítico deste tema e reconheça, também, a oportunidade que aqui se apresenta: Poucos temas tão claramente oferecem a chance de mostrar para a sociedade que a curiosidade científica, a discordância construtiva, a diversidade de ideias e a coragem intelectual ainda são valores cultivados na universidade.
Fonte: “Raciocínio Aberto“, 05/07/2019
